"E a cada
manchete, voltavam os jornalistas a
vigiar a casa da
Samantha, telefonar centenas
de vezes inclusive
para o seu emprego,
colocando-o em
cheque"
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“Manipulações da mídia e Judiciário podem
ser ainda piores que estupro? Livro de Samanhta Geimer, atacada pelo cineasta,
sugere que sim
Ladislau Dowbor, Outras Palavras /
CartaCapital
Resenha de The Girl: a
life in the shadow of Roman Polanski, de Samantha Geimer. Atria Books, New
York, 201. Lançado no Brasil como A Menina - uma vida à sombra de Roman
Polanski
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Somos todos fãs de Roman Polanski (O bebê de Rosemary, Chinatown, O
pianista), nos deu muita felicidade com os seus filmes. Como conciliar esta
simpatia com a visão de um quarentão que estuprou uma garota de 13 anos? Claro,
porque todos também lembram de Polanski por este lado mais escuro, em
particular porque tivemos algumas décadas de noticiário internacional e
nacional, em todas as mídias, sobre o “caso”. Com que gosto a mídia
internacional e o sistema judiciário americano ficaram se lambuzando, décadas a
fio, neste assunto predileto de uma boa parte da humanidade, que é de saber
quem faz o que com os buraquinhos de quem. Quando se junta fama, então, ninguém
resiste. Penetrar na intimidade dos famosos vende bem.
Quase quarenta anos depois dos fatos, Samantha Geimer, a garotinha,
decidiu escrever um livro não para pegar carona na fama que lhe granjeou o
caso, mas para denunciar a imensa indústria da notícia, a perversa articulação
da pompa do Judiciário com a mídia indignada, num quadro ideal e lucrativo:
poder falar de detalhes sexuais com o peito estufado de ética ofendida.
Comentários sobre o livro são numerosos, tenta-se extrair ainda algumas
gotas do assunto. Alguns ainda declaram de forma espalhafatosa que ela “perdoa”
o estupro, buscando gerar notícia. Mas o que temos aqui é diferente. Samantha
calou-se durante quarenta anos, tentando se esconder da mórbida curiosidade
mundial sobre como foi sentir a penetração anal de um pênis tão famoso. Hoje,
casada, com filhos, cinquentona, relata o drama de uma pessoa marcada aos 13
anos para sempre por este fato.
Ao constatar o teatro jurídico em que se transformou o seu processo, por
“sexo não-consensual”, já que não houve violência, e frente a um juiz que não
hesitava em consultar amigos jornalistas para saber como achavam que a opinião
pública receberia uma pena mais pesada ou mais leve que ele impusesse ao réu,
Polanski fugiu dos Estados Unidos e se refugiou na França. Com isto, o processo
continuou à revelia, com pedidos de extradição, uma detenção para averiguações
na Suíça, e a cada pequeno fato jurídico manchetes mundiais indignadas sobre o
cineasta famoso, contra ou a favor, mas sempre manchetes.
E a cada manchete, voltavam os jornalistas a vigiar a casa da Samantha,
telefonar centenas de vezes inclusive para o seu emprego, colocando-o em cheque. Nem os filhos
escaparam, emboscados em saídas da escola ou da própria casa. Na rua frente à
residência, vans estacionadas com vidros pintados, com filmadoras em
permanência focadas nas janelas, na porta de entrada. Na ausência de noticias,
inventaram-se entrevistas, declarações, tudo para alimentar a novela. Nunca a
deixaram ter uma vida familiar e profissional tranquila. Samantha não poupa
críticas. Ela era vítima, criança, tinha de ter a sua identidade protegida, ter
direito a uma vida que lhe permitisse se reequilibrar, voltar à normalidade,
sem tanta perseguição.
Do lado do Judiciário, o comportamento não foi melhor. Na noite do
estupro, Samantha contou para um ex-namorado, a irmã ouviu a conversa, contou
para os pais, que chamaram um advogado, que chamou a polícia, originando-se uma
denúncia formal, o que levaria a garota, que queria esquecer o assunto, a ser
obrigada a repetir para dezenas de autoridades judiciais os detalhes do caso,
se ele a forçou, como foi o diálogo, o que bebeu e assim por diante. E
naturalmente as penetrações anais com instrumentos para coleta de material,
para verificar a existência de esperma. E não tardaria, naturalmente, o
vazamento à imprensa do que tinham sido deposições cobertas pelo sigilo
judicial. Verdade que o juiz encarregado do caso, e que fez a sua fama nas
costas dela e de Polanski, terminou completamente desqualificado. Hoje
falecido, sobrou-lhe a fama e imagem de falso moralismo e de péssimo juiz.
No livro, em nenhum momento a autora perdoa o fato Polanski ter se
aproveitado, e deixa isto bem claro em várias passagens. Foi estupro, ponto.
Como escreve, “o perdão foi para a minha paz de espírito; tinha pouco a ver com
ele”. (p.228) Mas o eixo central que ela deixa claro em toda extensão do livro,
é que o aproveitamento do caso pela mídia e pelo Judiciário gerou sofrimento
para ela sem comum medida com o que tinha sofrido com o estupro. E mostra e
afirma igualmente que o sofrimento, exílio, prisões e perseguições que Polanski
sofreu também foram sem comum medida com o que ele fez. Samantha escreve com
raiva sobre famosos comentaristas de TV, em programas de grande audiência,
apelando para que o público se solidarize com a “pobre menina”. Mais lucro e
pontos de audiência em nome da ética.
A máquina é infernal. Os advogados de defesa do Polanski foram
naturalmente levados a destruir a imagem de menina abusada por um adulto,
jogando aos quatro ventos uma relação sexual que tinha tido com o namorado,
como prova de que não era inocente. E construíram uma imagem da mãe, como
piranha que ofereceu a filha para ganhar espaço na indústria do cinema em Hollywood. Os
advogados de acusação buscaram naturalmente fazer o semelhante com Polanski. A
opinião pública se dividiu entre os que se solidarizaram com Polanski contra a
garotinha perversa e a mãe piranha, ou os que navegaram na defesa da pobre
menina inocente e da mãe enganada.
O interessante mesmo, é que ninguém deu a mínima para a preservação da
intimidade e da vida da vítima, nem para uma justiça discreta e eficiente que
punisse o que foi um crime. O casamento da grande mídia comercial com um
sistema judiciário perverso, no caso, moeu a vida de duas pessoas que mereciam
melhor. Nada melhor que a palavra da própria Samantha: “A razão de ser da
justiça não é o entretenimento ou enriquecimento de funcionários públicos,
comentaristas e corporações da mídia. Eu não acredito que a punição e o
espetáculo possam substituir a justiça.”(P.242)
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Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em
economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em
http://dowbor.org
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