Arlindenor, Correio do Brasil
“Os situacionistas europeus de meados do século XX têm um lugar destacado na história devido a forma singular que tinham de encarar a vida e a forma de vivê-la .
Recém saídos da guerra buscaram contrapor com suas idéias libertárias as propostas de reconstrução do mundo europeu originárias da burguesia liberal turbinada pelo Plano Marshall, que apresentam uma forma de urbanismo mais de acordo com a sociedade moderna de consumo.
Neste momento as cidades se modificam , mudando inclusive a relação do cidadão com o espaço urbano.
“…defendemos o Urbanismo Unitário como negação do urbanismo que não constrói nada “sobre o terreno” e sim “sobre o papel”. Buscamos um urbanismo de novas espacialidades que permitam modos de vida em consonância com processos de subjetivação apropriados, que integrem a cidade em uma rede permanente de interações com as devidas ressonâncias nas construções intersubjetivas inerentes à pluralidade da vida comum”, assim se colocavam os situacionistas, contrapondo-se , inclusive , às propostas modernistas de Le Corbusier, que naquela época empolgava segmentos importantes da esquerda e dos comunistas .
Enquanto a arquitetura modernista organizava o espaço, impedindo a revolução, os situacionistas viam o espaço urbano no seu aparente caos como o campo profícuo para o desenvolvimento de uma arquitetura que incentivasse as relações pessoais que impeliriam os homens para contestação e a revolta, tirando-os da passividade e alienação .Os situacionistas chegaram então a uma convicção exatamente contrária àquela dos arquitetos modernos.
Enquanto estes acreditavam em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo.
Armados com os conceitos da Psicogeografia – concebida como “ciência” destinada a analisar e decifrar as interações entre humanos e contextos ambientais – os situacionistas desenvolveram práticas em que buscavam avaliar os efeitos do meio ambiente, ordenado conscientemente ou não, sobre o comportamento afetivo e os sistemas perceptivo e cognitivo dos indivíduos.
Trata-se de um procedimento estratégico utilizado pela Internacional Situacionista que ela trouxe a público , nos 12 números da Revista da IS , através de magistrais artigos de seus integrantes, destacando -se aí Guy Debord e Raoul Vaneigem.
Uma das ferramentas principais para a construção dessa nova forma de olhar os grandes espaços urbanos foi a prática da deriva ( teoria da deriva ) utilizada na formulação dos conceitos libertários sobre urbanismo , nas suas mais variadas formas , tendo em Debord um dos seus mais entusiastas praticante e defensor .
“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante.
Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos”. Assim os situacionistas definiam a ” deriva” em sua Revista IS.
“Pode-se derivar sozinho, mas tudo indica que a repartição numérica a mais frutífera consiste em muitos pequenos grupos de 2 ou 3 pessoas chegando a uma mesma tomada de consciência, o recorte das impressões desses diferentes grupos devendo permitir conclusões objetivas. É desejável que a composição desses grupos mude de uma deriva a outra. Acima de 4 ou 5 participantes, o caráter próprio a deriva decresce rapidamente, e em todo acaso é impossível superar a dezena sem que a deriva se fragmente em muitas derivas dirigidas simultaneamente. A prática deste último movimento é, aliás, de um grande interesse, mas as dificuldades que ele desencadeia não permitiram até o presente organizá-lo com amplitude desejável.
A duração média de uma deriva é um dia, considerado como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sol. Os pontos de partida e chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são indiferentes, mas é preciso notar, entretanto, que as últimas horas da noite são geralmente impróprias para a deriva.
Esta duração média da deriva não tem senão um valor estatístico. Logo ela se apresenta diferente de sua pureza, os interessados evitando dificilmente, no começo ou no fim deste dia, de se distrair uma ou duas horas para empregá-las em ocupações banais; no fim do dia a fadiga contribui muito a este abandono. Mas, sobretudo, a deriva se desenvolve frequentemente em algumas horas deliberadamente fixadas, ou mesmo fortuitamente durante muitos breves instantes, ou ao contrário durante muitos dias sem interrupção.
Apesar das paradas impostas pela necessidade de dormir, certas derivas com uma intensidade suficiente são prolongadas por 3 a 4 dias, mesmo mais que isto. É verdade que no caso de uma sucessão de derivas, durante um longo período, é quase impossível determinar com alguma precisão o momento em que o estado de espírito próprio de uma deriva dá lugar a de outra.
A influência das variações do clima sobre a deriva, embora real, não é determinante senão no caso de chuvas prolongadas, que a impedem quase absolutamente. Mas as trovoadas ou as outras espécies de precipitações aí são ao contrário propícias…” ( in Internatonale Situationniste, pp.51-55).
Eu acentuaria, então , que devemos ter em conta que o acaso é um elemento determinante no processo da deriva. Portanto, o planejamento para este tipo de estudo não deve ultrapassar além da escolha do ponto de partida. Nao se trata aí de um passeio turístico e nem de se querer chegar a um local definido. O ato de se perder no espaço e no tempo tem um importante reflexo no conteúdo do que se colher: com sapatos confortáveis, água , sanduíches , máquinas fotográficas, papel para anotações, abrigo para o sol, etc, devem àqueles que se lançam na deriva deixar o ambiente envolvê-los e caminhando ou parando, muito de acordo com a percepção do espaço e das pessoas que nele transitam, vivem ou apenas fazem comércio .
Após a deriva deve-se então sistematizar a empreitada, através das impressões, das imagens, dos sons e das anotações colhidas.
Por que viramos em uma determinada rua e não em outra? Que impressões ficamos da praça onde parou- se para conversar. Como variou a temperatura, durante as mudanças de locais. Que tipos vimos pelos caminhos ? Que impressão nos dão as fachadas encontradas.
Aqui no Brasil, com o processo de integração da economia aos grandes mercados globais, as nossas metrópoles estão passando por um processo de grandes transformações e mudanças.
Em apenas algumas décadas, num movimento fantástico, fez-se o transplante de levas inimagináveis de pessoas para as grandes cidades. Em pouco tempo deixamos, então , de ser um país rural, e hoje, quase que 90 % da população vive nas áreas urbanas, num processo constante e desordenado que transformou essas cidades em uma fonte de problemas insuperáveis .
Impossível uma máquina pública que dê conta das questões apresentadas por essas megacidades: transporte insuficiente, insegurança , precárias condições de deslocamento, sistema de saúde e atendimento médico são alguns dos elementos que as transformaram em verdadeiros barris de pólvora, onde reina a insatisfação em todos os segmentos sociais.
Dentro do conceito de sociedade da mercadoria, as próprias cidades transformaram-se em produtos, e como tais, são vendidas no mercado internacional do turismo como centros de lazer, de sexo, de negócios, de esporte , etc, obrigando aos seus moradores a uma rápida adaptação a nova finalidade comercial da cidade.O ato de morar, de ocupar um imóvel, passa a estampar uma situação onde o valor de uso ( as condições reais da moradia) se submete ao valor de troca ( o preço de mercado da moradia ). Mora-se, ou tem-se um ou mais imóvel em um bairro, de acordo com o valor adquirido no mercado imobiliário.
Impulsionado por este mercado , áreas que antes se colocavam como reserva da especulação ( e por isto a décadas não recebiam investimentos públicos ) recentemente passaram a viver um momento de mudanças radicais para atender aos traçados feito nas pranchetas dos investidores em eventos como Copa de Mundo, Olimpíadas , etc. Para isto, populações são deslocadas e instaura-se um momento de grande especulação imobiliária com a alta nos preços de compra, aluguéis, serviços, etc, que atinge não só os bairros alvos como a cidade como um todo.
Projetos como o “Porto Maravilha” , “Cidade Olímpica”, no Rio e outros semelhantes em outras cidades, são implementados a toque-de-caixa, alterando -se traçados e a forma de viver de importantes segmentos da população .Santuários ecológicos, como o Cocó, em Fortaleza, dão lugar a vias expressas e viadutos, para atender a ganância dos investidores, que vorazmente vão ocupando todos os,espaços,em nome de um pretenso progresso.
Nas décadas de 50/60 na Europa a atividade política dos situacionistas , dentre outros, conseguiu impedir a destruição de inúmeros logradouros em cidades importantes, como Paris, Amsterdã, etc. Suas atitudes , que chegaram ao auge nas grandes insurreições de 68 ,em toda a Europa, foram decisivas na conscientização de parcelas importantes de diversos países que exigiram melhores condições de vida nas cidades que habitavam.
Penso que os movimentos atuais no Brasil, como o Catraca Livre , Ocupar Cocó, Ocupa Câmara , e outros , que têm levado milhões de pessoas às ruas, são filhos diretos das manifestações e movimentos de debate e contestação, daquela época , onde os situacionistas se destacavam.
Suas ideias estão muito atuais e têm influenciado muitos ativistas desses movimentos, haja vista a intensa republicação de seus artigos e apontamentos, notadamente os que saíram através da IS.
A prática da deriva nessas grandes metrópoles pode se tornar um valioso instrumento de compreensão da real vida real, a vida- vivida, que nela ocorre, ultrapassando-se o irreal que nos é vendido através das peças publicitárias das agências que servem às grandes corporações imobiliárias .
Derivar pelo Bexiga, em São Paulo, pela Rua do Jogo da Bola , na zona portuária do Rio, ou mesmo pelo centro de Recife, Fortaleza, BH e outras cidades , certamente será um grande prazer , pois são áreas que estão alterando sua forma centenária de viver e logo entrarão na lógica da sociedade da mercadoria. Os apontamentos e contextualização da realidades desses logradouros torna-se imperiosa para o nascimento de uma nova realidade que virá após o capitalismo . Para isto basta nos apropriarmos das novas tecnologias como a Internet, You Tube, etc .,e registramos nossas experiências .
Serra da Mantiqueira, 21 de novembro de 2013
Arlindenor Pedro
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