Tatuagem: o cinema de raiz vem do nordeste


Filme de craques, estreia em longa-metragem de ficção de Hilton Lacerda tem como arma o deboche dos cafofos do underground recifense.

Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior

“A minha arma é o deboche” – assim o cineasta pernambucano Hilton Lacerda inicia seu filme Tatuagem que se passa no ano de 1978, nos cafofos do underground, o undigrudi de Recife, em um fim de década, quando o país se mostrava exausto com a ditadura civil-militar que se abria ‘lenta, segura e gradual’, num jogo exasperante que parecia sem fim e punha à prova a resistência da população. Ela só terminaria seis anos mais tarde.

Naquele ano, o deboche de Lacerda já durava dez anos. Vinha da tropicália ainda não comercializada, dos parangolés de Oiticica, dos filmes anárquicos de Glauber e do teatro libertário de Zé Celso, do consumo geral de todas as drogas. Dos desafios das diversas identidades sexuais que se impunham publicamente, dos dribles na censura,  e do liberou geral da Boca paulista e dos inferninhos cariocas de Copacabana. Trilha sonora da época:  Chico Buarque e ainda perdurando a languidez das lindas canções desencantadas de Dolores Duran.

No Rio de Janeiro, o grupo Dzi Croquetes se inscrevia na história local dos shows de bolso.

O deboche também vinha de todas as periferias. Em Recife, um grupo de teatro, anarquista e irreverente, o Vivencial, com força de 72 a 79, e que bebera em todas aquelas fontes, exercia um “papel importante para toda uma geração”, lembra Hilton Lacerda em entrevista de lançamento do filme à jornalista Gracie Santos, do Diário de Pernambuco.

É a sua estreia em longa-metragem de ficção. Levou sete anos para ficar pronto e agora chega trazendo consigo uma bagagem prestigiosa: quatro Kikitos ganhos em Gramado, outros cinco no Festival do Rio deste ano, mais menções honrosas, prêmios e elogios em vários  eventos cinematográficos.

Tatuagem recria à perfeição a atmosfera do tempo. Quem viveu esse mundo e essa época evoca até o perfume da cannabis que exalava das festas e das comunidades. Recortando um pedaço da história do Vivencial, o filme nasceu, segundo Lacerda, na sua entrevista, de uma conversa dele com o escritor, dramaturgo e cineasta mineiro João Silvério Trevisan. “O Vivencial era anarquista. O pessoal colocava em questão as discussões de gênero e as inquietações políticas com muita irreverência.” Como o filme se passa em 78, “os personagens pensam no futuro que imaginam e enxergam o presente e todas as caretices que vivemos hoje.” 

Roteirista respeitado de festejados filmes como Amarelo Manga, Baile perfumado e Febre do rato, todas elas produções pernambucanas, Lacerda faz parte do grupo nordestino autor de um cinema de raiz bem distante da estetização influenciada fortemente pela linguagem indigente das novelas globais do cinema do eixo Rio-São Paulo. Comédias vazias ou estilização ao modo americano da violência da polícia e da cultura das favelas passadas pelo photoshop.

Sua tribo é a mesma dos competentes cineastas pernambucanos, entre outros, Claudio Assis, Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso e Kleber Mendonça Filho, este, autor do famoso O som ao redor, candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2014.

Lacerda é companheiro regional do diretor em ascensão, o cearense Halder Gomes, também em cartaz esta semana no sudeste. Gomes chega com Cine Holiúdy. Seu cartão de visitas registra um faturamento de 400 mil ingressos vendidos apenas no Nordeste. Ele é companheiro também de Karim Aïnouz, mais um talentoso cineasta nascido em Fortaleza (autor de O abismo prateado).

“Gosto do olhar periférico,” costuma dizer Lacerda. “Do menor no lugar do maior”. O seu ator, Irandhir Santos, outro pernambucano, chama a atenção para o viés político de Tatuagem, que fala de afeto, amor e amizade em uma história entre gays e diz que o filme trata também da liberdade de expressão e “vem em um momento incrível para fomentar essas discussões”. Pode-se encontrar certa simetria. Na década de 70 eram as fardas que operavam a missão de reprimir, arbitrar e punir, como mostra o filme. Ainda não tinham sido substituídas pelas togas enraivecidas de hoje. “Temas que persistem e precisam ser discutidos e avaliados”, Irandhir ressalta, em entrevista.

Irandhir é um caso à parte em Tatuagem onde faz o protagonista proprietário do inferninho, o Clécio. É um dos mais brilhantes atores brasileiros do cinema nacional. Trabalhou em outros excelentes filmes pernambucanos: Cinema, aspirinas e urubus; Besouro; Viajo porque preciso, volto porque te amo; O senhor do labirinto. São poucas suas incursões no cinema produzido no sudeste. Por enquanto, ainda não se deixou cooptar pela mediocridade da TV e continua trabalhando firme em Recife.

As nuances do trabalho de Irandhir como segurança do condomínio retratado em O som ao redor são marcas fortes – assim como aqui, no seu Clécio. Ele tem a maturidade dos atores especiais. (No filme de Mendonça Filho, Santos deixa o espectador até o último minuto sem saber se seu personagem é um matador ou um capanga de ocasião).

Além de Irandhir, o elenco é coeso e o trio principal, eficiente. Jesuíta Barbosa (o recruta do exército que seduz e se deixa seduzir por Clécio/Irandhir) e Rodrigo Garcia (o Paulette, ex-amante de Clécio). Filme de craques, Tatuagem conta também com o famoso montador Mair Tavares na equipe. Mair trabalhou com Glauber Rocha como assistente de montagem de Terra em transe e Macunaíma e como montador em Bye Bye Brasil e Quarup, de Rui Guerra, assim como em outros tantos filmes do dicionário do cinema clássico brasileiro.

Hilton Lacerda foi aluno de curso de jornalismo – não concluído - antes de começar a fazer cinema. Confirma em Tatuagem o talento de excelente roteirista. É um condutor certeiro de diálogos: o que, aliás, mais falta faz ao cinema nacional, e cria, com Mair, o ritmo quase perfeito na primeira parte deste seu primeiro filme. Mais além, como que se deixando levar pela inventividade dos shows de bolso que o cabaré, o Chão de Estrelas, apresenta - a direção de arte de Renata Pinheiro é excepcional – ele acompanha a cena com segurança e domínio de câmera, mas prejudica o ritmo geral que só se ajusta no último espetáculo do cabaré.

É quando o deboche, total, explode e se transforma em arma – de ontem e para hoje – neste filme de raiz.”

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