Cena do documentário 'Tarja Branca' |
Deni Rubbo, Outras Palavras/ CartaCapital
"Ouça um bom conselho que vai de graça:
hoje, amanhã, ou por esses dias, não se acanhe de selecionar a foto de
que você mais gosta de quando era criança guardada na sala ou naquele
armário empoeirado. Preferencialmente uma foto que vai rememorar aquela
criança viva, ativa, sorridente, brincalhona, lúdica que você foi. Olhe
para ela e faça as seguintes perguntas: Como ela está e por onde ela
está? Caso não tiver coragem, não se preocupe, a foto perguntará para
você. A possibilidade de nos assustarmos é altíssima. E de repensarmos
algumas coisas também.
Esse sábio conselho aparece em um dos trechos do sensível e delicado documentário Tarja Branca – A Revolução que Faltava, dirigido por Cacau Rhoden. Produzido pela Maria Farinha Filmes, que possui em sua bagagem documentários sobre a infância como Muito Além do Peso (2012) e Criança, a Alma do Negócio (2008), ambos de Estela Rennel, Tarja Branca é um incrível manifesto pelo direito de brincar da criança. Isso mesmo.
Se nos documentários precedentes a criança fora
relacionada especificamente aos problemas de saúde e marcas de
publicidade, agora está latente a hipótese de que a brincadeira das
crianças está em crise. Brincar tornou-se um ato perigoso.
Esconde-esconde, pega-pega, empinar pipa, pular corda, e os versos da
canção Doze Anos, de Chico Buarque, da Bola de Meia, Bola de Gude, de Milton Nascimento e de Moleque, de Gonzaguinha, estão tornando-se cada vez mais ausentes em nossa sociedade.
O maior recheio do filme está nas entrevistas que
moldam um determinado discurso, preparam uma defesa para o tema
proposto. Pessoas de profissões das mais diferentes funções, pedagogos,
artistas, humoristas, psicólogos etc. misturam depoimentos pessoais com
análises distintas e instigantes.
Todos parecem concordar que o brincar é a
atividade raiz da infância. Trata-se de uma atividade soberba porque
expressa a plenitude, a expansão, a liberdade, a unidade. É a primeira
maneira de se ligação com o mundo social. Ela é, segundo um dos
entrevistados, aquela água subterrânea que percorre todo o rio da vida
que bebemos e de que dependemos.
A proposta também escora-se nos adultos. Deve-se – por necessidade – resgatar a criança dentro de cada adulto. Não é uma tarefa simples, como procurar numa caixa velha uma ferramenta perdida, pois, na maior parte das vezes, nem percebemos o quanto nos tornamos sérios demais e ocupados demais para brincar não somente com os outros, mas com nós mesmos.
Concluímos, ainda, nos anais da vã filosofia sobre
“maturidade adulta”, que seriedade é sinônimo de competência e que
brincadeira é sinônimo de imperfeição. A primeira é profissional e
eficaz, enquanto a segunda é imprudente e desnecessária. Porém, não se
trata de regressar ao estado infantil, de deixar que subam passivamente
os vapores das saudades, mas de recompor o lugar e o momento dessas
condutas perdidas.
Quantas vezes crianças não ouvem dos adultos que
“hoje não dá, filho, estou ocupado”, “hoje não dá, filha, estou com
muita pressa” ou “estou muito cansado”.
Mas não nos esqueçamos de algo fundamental: a pressa,
a ocupação, o cansaço não são apenas frutos da disposição individual de
cada um, mas de circunstâncias sociais e históricas precisas. Assim,
em Tarja Branca, às vezes fica a sensação de que basta que cada
pessoa olhe para a criança que está dentro de si e aflore
espontaneamente o universo lúdico da qual estava tolhida. Afinal,
trabalha-se 12, dez, oito horas por dia, porque as contas chegam,
enfrenta-se diariamente trânsito crônico, além de todos os outros
deveres do cotidiano. Então, nesse contexto, quais as condições da
criança (re)nascer no adulto? O aborto dia a dia dessa criança não é
feito pela escolha do adulto, mas por circunstâncias que ele se defronta
diretamente.
Para recuperar o lúdico na vida cotidiana é preciso
lutar contra um processo histórico específico que trocou a brincadeira
artesanal, autêntica, pelos shoppings centers e consumos de eletrônicos.
É preciso também de ideias, critérios e perguntas radicalmente
diferentes do que os slogans da sociedade moderna invoca o tempo todo. A
começar, por exemplo, pela redução drástica do tempo de trabalho
obrigatório e a mudança da própria noção de trabalho.
Trocando em miúdos, não poderá haver completo
desenvolvimento individual do “tempo livre” enquanto o trabalhador
permanecer alienado e mutilado no trabalho. Sair em defesa da “tarja
branca”, portanto, é também atacar de frente os imperativos da “tarja
preta”. E o documentário apenas flerta com esse exercício. No entanto, é
indiscutível sua resistência, em muitas falas e imagens, na ligação com
a cultura popular, até porque as tônicas dos discursos no filme não são
homogêneas.
Brigar politicamente para brincar socialmente. Sem
isso ficamos um pouco ingênuos; e com isso ficamos com uma esperança
crítica, que sempre renasce à luz das provas históricas. Assim, o peão, a
bola de meia, a rua, a dança na chuva, estão do lado da trincheira da
transformação social. Daí, o direito de brincar das crianças (e das
crianças nos adultos) figura como naqueles versos de Carlos Drummond de
Andrade: “Vence o tédio, ilumina o dia e instaura em nossa natureza a
imperecível alegria”.
Ah, leitor, por favor, não se esqueça: da gaveta, do álbum, da foto e das perguntas."
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