“Lucy” (2014) do diretor francês Luc Besson (“O Quinto Elemento”, “Leon: The Professional”), com estreia marcada para esse mês nos cinemas, é mais um filme da safra atual com o tema do pós-humano (“Transcendence”, “The Machine”, “Limitless” etc.). Todos se baseiam em um mito que é o pressuposto da filosofia pós-humanista que anima a agenda tecnocientífica atual: o homem seria um ser limitado porque utilizaria tão somente 10% da capacidade cerebral. Sua limitação viria do corpo físico que nos aprisionaria no medo e na dor. Mito desconstruído por neurologistas sérios como Barry Gordon, da John Hopkins School of Medicine. Por meio de drogas ou tecnologias cibernéticas o homem daria em “upgrade” em si mesmo, acessando 100% o “banco de dados” cerebral. “Lucy” revela uma nova religião onde Deus é substituído pela tecnologia e a alma pela informação.
Certamente Nietzsche foi o
primeiro filósofo a afirmar de modo mais enfático a necessidade de, ao invés de
se aperfeiçoar, a espécie humana deveria superar a si mesma na direção de um
supra-humanismo. A figura do super-homem nietzschiano assombrou o século XX
onde o desenvolvimento tecnológico sem precedentes paralelo a guerras e
extermínio apontaram para uma suposta imperfeição humana que deveria ser superada
com o auxílio da tecnociência.
Acompanhamos na atualidade uma
recorrência de produções cinematográficas que repercutem a última onda da
agenda tecnocientífica atual caracterizada pelo que chamamos de
tecnognosticismo: a crença de que toda a imperfeição humana deriva da
necessidade de superação de três inimigos naturais: a realidade, o mal e a
morte.
Filmes como Limitless (2011), The Machine (2013), Transcendence (2014) expressam a última fase do movimento pós-humanista da construção de um novo homem não apenas mediado por próteses ou por aquilo que chamamos de artificial. Esses filmes expressam algo mais além: a superação da própria carne com a descoberta de que aquilo que chamamos de humano encontra-se na mente, presa nas limitações físicas do corpo é que deve ser libertado por meio de up grades e up loads tecnológicos que convertam o humano em dados e informação.
Sem o corpo, a mente se espalharia livre não apenas por redes que fazem interface entre redes informáticas e neuronais, mas se disseminaria nos próprio tecido da realidade, em cada gotícula de água, molécula ou seiva de árvores. Vivemos a era utópica de um panteísmo digital.
Lucy (2014) do diretor francês Luc
Besson (com estreia brasileira marcada para 28 de agosto) é mais um filme de
ficção científica dentro dessa agenda pós-humanista. Só que enquanto os filmes
acima citados fazem até algumas incursões filosóficas mostrando as ambíguas
relações entre o homem e a tecnologia (principalmente em Transcendence onde são apresentadas as perigosas conexões entre
tecnociência e a vontade de poder), em Lucy a atual agenda pós-humanista assume
um tom propagandístico e apologético.
O Filme
Após
as suas performances como um ser digital em Ela
(Her, 2013) e um extraterrestre em Sob a Pele (2013), a atriz Scarlett
Johansson dá um próximo passo lógico no papel-título de Lucy. O conceito do filme é sobre o que aconteceria se um ser
humano utilizasse 100% da sua capacidade cerebral, já que supostamente (e é
esse o polêmico pressuposto do filme) apenas chegamos a utilizar 10%.
Lucy
não só sobrevive à overdose da droga mas começa a sofrer inesperados efeitos
coleterais: progressivamente Lucy começa a acessar partes cada vez mais
profundas do cérebro – 20%, 30% e assim por diante. Ela começa a possuir
poderes telecinéticos, sensoriais como leitura da mente, interceptação de dados
de redes de telecomunicações entre outros superpoderes que desafiam o
entendimento humano.
A
partir daí Lucy corre contra o tempo, pois seu corpo não suportará por muito
tempo a potente droga: por isso ela irá para Paris em busca da ajuda do professor
neurocientista Norman (Morgan Freeman) cujos conhecimentos guiarão os
espectadores com suas explicações científicas a respeito da nossa subutilização
do cérebro. Tudo isso com o cruel Sr. Jang e seus capangas no encalço.
O mito dos 10%
Lucy é um anti-suspense: a cada dez minutos na
narrativa seu cérebro sofre um upgrade
e tem o seu poder ampliado, tornando-se cada vez mais invencível e uma
verdadeira máquina de matar reduzindo a pó os desesperados capangas do Sr.
Jang. O filme recicla de tudo, de 2001
de Kubrick a Matrix – sua capacidade
de assimilação de dados é tão impressionante que passa a ver a própria
realidade como uma rede infinita de fluxo de dados, invisíveis a olho nu,
lembrando o herói Neo de Matrix.
Lucy
baseia-se em uma falácia neurocientífica que transformou-se em um mito no qual
se baseia o momento atual da filosofia pós-humanista: o mito da subutilização
do cérebro. De acordo com artigo da revista Scientific American de 2008 do
neurologista Barry Gordon (Johns Hopkins School of Medicine) “As pessoas
utilizam apenas 10 por centos dos seus cérebros?”, o mito dos 10% é tão errado
quanto risível.
“O que não é compreendido é como os neurônios das diversas regiões do cérebro colaboram para formar a consciência. Outro mistério escondido dentro do nosso córtex plissado é que, de todas as células do cérebro, apenas 10% são neurônios, os outros 90 são as células gliais, que encapsulam os neurônios e cuja função permanece em grande parte desconhecida... Há pessoas que tiveram seus cérebros feridos ou partes dele removido e que ainda vivem uma vida razoavelmente normal, mas isso porque o cérebro tem uma maneira de compensar” ("Do People Only Use 10 Percent of Their Brains?"- Scientific American, 07/02/2008).Não é que nós usamos apenas 10% do nosso cérebro. Na verdade só conseguimos até aqui compreender o funcionamento de 10% dele.
Esse
mito serve a toda a filosofia pós-humanista que motiva a atual agenda
científica tecnognóstica: a metáfora do cérebro como um software que necessita
de upgrades para realizar todo o seu potencial. E o que limita o potencial da
mente? No filme, a própria protagonista Lucy fala em um dos seus monólogos de
epifania tecno-mística: medo, desejo e dor.
Uma nova religião tecnológica?
Por
isso a carne nos limita, o corpo é uma prisão da qual devemos nos libertar. Só
que dessas vez não será pela ascese, disciplina mental, ética e moral ou
iluminação espiritual. A gnose é tecnológica: converter mente e espírito em um
processador quântico de dados.
Com
a cibernética e a tecnologia computacional do pós-guerra, a essência humana é
reduzida à mente que, por sua vez, é traduzida como informação, processamento e
cognição. Para o pensamento cibernético, os seres humanos não são tanto de
carne e osso, mas padrões ordenados de informação.
Na
fase atual, o próximo passo da evolução humana seria a libertação da mente da
sua prisão corpórea (fonte da dor, medo e desejos carnais) para um upload final numa espécie de panteísmo
digital expresso no filme de Besson: na alucinante sequência em CGI onde vemos
as partículas individuais de Lucy lutando para se libertar da prisão corpórea
temos a preparação do espectador para o gran
finale panteísta ao melhor estilo do filme Transcendence como Johnny Deep.
Não
importa se essa agenda pós-humanista ou tecnognóstica que anima a atual agenda
tecnocientífica de fato vá se realizar. De que o futuro nos reserva uma
existência sem corpos onde nos transformaríamos em anjos imortais que
habitariam o divino céu cibernético da informação.
Na verdade ela é apenas filosofia ou conceito que anima toda uma pseudo-ciência da literatura de autoajuda e filmes e livros motivacionais que povoam o mundo corporativo do nosso dia-a-dia. Aquilo que filmes como O Segredo ou livros sobre o poder do “pensamento positivo” vendem: você só se tornará um vencedor nos negócios e na vida se conseguir se libertar de todas as imperfeições da carne, alcançando todas as potencialidades do seu Eu. Uma nova religião de salvação (assim como foi o cristianismo e o judaísmo), só que dessa vez Deus foi substituído pela tecnologia e a alma pela informação."
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