Wilson Ferreira, Cinegnose /GGN
"Conhecido pelos seus
protagonistas que vivem sempre à margem da sociedade, arrebatados pelo
vazio existencial e, por isso, capazes de um olhar mais crítico e
verdadeiro, o diretor Jim Jarmusch (“Estranhos no Paraíso”, “Down By
Law”, “Dead Man”, “Flores Partidas”) agora acrescenta os vampiros a sua
galeria de anti-heróis. Em “Amores Eternos” (Only Lovers Left Alive,
2013) Jarmusch questiona como seria viver eternamente em um mundo de
seres mortais. Como seres que atravessaram séculos por todas as cenas
culturais, científicas e artísticas poderiam viver num mundo que parece
ter esquecido de tudo que de mais importante a História ofereceu (como,
por exemplo, o trágico destino das ideias do cientista Nikola Tesla), e
vê no You Tube a sua única fonte de cultura e entretenimento.
Ironicamente, para os vampiros os mortais não passariam de “zumbis” –
seres condenados pela morte a recomeçarem sempre do zero do
esquecimento.
Parecia que o cinema já tinha mostrado tudo sobre os vampiros: seres
da noite, mortos vivos, encarnação do próprio Mal, seres dotados de
perigoso poder de sedução, amores platônicos entre vampiros e mortais,
amaldiçoados com a imortalidade, doentes contagiosos etc. Mas faltava um
diretor como Jim Jarmusch para trazer esse personagem para a sua
galeria de anti-heróis underground, aqueles que vivem à margem da
sociedade e que, por isso, são capazes de um olhar crítico para uma
sociedade de resignados.
“Amores Eternos” passa bem longe do horror e violência naturalmente
associados ao sombrio personagem, para abordá-lo com uma extrema ironia:
os vampiros podem ser mais humanos e sensíveis do que os próprios
mortais, graças às bênçãos da imortalidade. Por terem vividos centenas
de anos e passados por inúmeras cenas culturais (período medieval,
renascimento, modernismo etc.) e terem convivido com grandes nomes como
Shakespeare, Byron, Shelley, se tornaram os perfeitos críticos de arte,
música, literatura e cultura.
Mas essa condição lhes cobra um preço: o de viver à margem da
sociedade como estrangeiros. A ironia do filme de Jarmusch é que essa
condição não é dada pela monstruosidade ou maldade: eles se isolam
porque querem, por não mais suportarem a decadência de uma cultura
centrada no YouTube e tecnologia digital – cujo vampiro Adam trata com
um divertido desdém durante todo o filme.
Por isso chamam os mortais de “zumbis”, cuja decadência espiritual é
tão grande que acabou contaminando o próprio sangue. Agora, para obterem
o precioso alimento, os protagonistas têm que recorrer a canais
exclusivos de venda como bancos de sangue ou tráfico ilegal do tipo “O
negativo”, o mais apreciado.
Essa é a grande sacada gnóstica de Jarmusch: os vampiros seriam seres
superiores pela imortalidade, que confere uma continuidade à formação
espiritual e cultural, diferente dos mortais – seres descontínuos,
fadados ao esquecimento a cada morte e reencarnação, seres condenados a
sempre recomeçarem do zero. A morte é uma prisão e a imortalidade
liberta a alma dos vampiros: eles acumulam conhecimento desde épocas
imemoriais.
O Filme
Os amantes do título do filme são o recluso Adam (Tom Hiddleston) e a
andrógina Eve (Tilda Swinton). Mesmo passados tantos séculos, ainda são
perdidamente apaixonados. Adam é obcecado por tecnologias antigas,
discos de vinil e guitarras clássicas. Mora em um casarão onde possui um
pequeno estúdio onde grava seu som soturno com aparatos analógicos.
Tenta se esconder na cena de rock da cidade de Detroit: roqueiros tentam
conhece-lo, fascinados pela sua música que ocasionalmente é tocada em
casas noturnas underground.
Eve vive separada de Adam, em Tânger (Marrocos) . Vive cercada de
livros raros e parece ser mais adaptada às transformações que o mundo
sofreu. Possui uma atitude mais positiva em relação à existência eterna –
“apreciar a natureza, o carinho e a amizade”, como diz.
Ao contrário, Adam vem desenvolvendo uma crescente melancolia pela
perspectiva da vida eterna. Não tanto porque vê a eternidade como uma
maldição, mas porque a sociedade e a cultura dos zumbis é decadente:
esqueceu os ensinamentos de todos os grandes nomes da ciência e da arte,
tornando tudo contaminado pela mediocridade. E a baixa qualidade do
sangue dos zumbis é uma simples metáfora disso.
Por isso Adam tem um projeto secreto de dar cabo da própria
imortalidade com uma bala de madeira. Eve pressente que a melancolia de
seu amante pode ter graves consequências e viaja do Marrocos para
Detroit para ajudar seu amante eterno.
Por que um vampiro viveria em Detroit?
Por que um vampiro secular escolhe ficar recluso em um velho casarão
na cidade de Detroit. Jarmusch acerta na escolha: nada mais gótico e
decadente do que essa cidade, outrora símbolo do progresso
técnico-industrial com as grandes fábricas de automóveis. Hoje, uma
cidade vazia, com ruas por onde se arrastam indigentes e desempregados,
vagando por quarteirões com fachadas em ruínas.
Adam e Eve passeiam à noite relembrando o passado. A certa altura
entram no que foi o famoso Teatro de Michigan, construído na década de
20: enormes lustres e suntuosidade deram lugar a um estacionamento de
carros velhos.
Símbolo das promessas da Modernidade (o progresso que a ciência e a
tecnologia trariam ao homem), converteu-se em ruínas. Assim como a
própria Ciência. Adam tem como seus únicos heróis os cientistas, vítimas
da decadência espiritual dos zumbis: “Veja o que fizemos com eles.
Pitágoras assassinado, Galileu, condenado. Copérnico, ridicularizado. O
pobre Newton, condenado a praticar alquimia escondido. Tesla, destruído.
Lindas possibilidades completamente ignoradas”.
O que lembra uma das frases do filósofo Theodor Adorno sobre o papel
da Filosofia na modernidade: “Não se trata mais de fazer projetos para o
futuro, mas de relembrar as oportunidades perdidas no passado”. Adam é
um vampiro ao mesmo tempo romântico e pós-moderno: todas as
oportunidades da Ciência se perderam, para tudo terminar na mediocridade
do You Tube."
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