Nas trilhas de Cássia Eller


'No mês de nascimento e morte de Cássia Eller, repórter percorre Brasília para mostrar lugares frequentados pela cantora durante a juventude na capital do país; cartas, fotos e depoimentos ajudam a recontar essa história

Maíra Streit, Revista Fórum 

Impossível falar de rock brasileiro sem se remeter à Brasília dos anos 70 e 80. O período ficou conhecido como um dos mais efervescentes da cultura nacional pela quantidade de bandas e sons experimentais que ecoavam por todos os cantos da cidade.

A capital recém-construída não parecia muito atraente aos mais jovens, que reclamavam das poucas opções de lazer, cercados por prédios administrativos e trâmites burocráticos girando à sombra do Congresso Nacional.

Porém, os maiores símbolos do poder do país, em plena ditadura militar, formavam também o cenário propício para a expressão da rebeldia juvenil. A facilidade de acesso a discos e revistas estrangeiras, por meio das inúmeras embaixadas, trouxe ao local a influência do movimento punk.

Entediados e com os hormônios à flor da pele, os jovens viram na música uma forma de clamar por mais liberdade política e comportamental, trazendo para as letras de protesto as contrariedades do regime opressor. Nesse contexto, surgiram bandas como Legião Urbana e Capital Inicial – formadas por integrantes do antigo Aborto Elétrico – Plebe Rude, Escola de Escândalo, Detrito Federal e centenas de outras.

Eis que, em meio a toda essa revolução sonora, chega às terras vermelhas do Planalto Central uma menina tímida, que não pertencia à classe média alta, como boa parte dos músicos locais de destaque. Aos 18 anos, estava mudando para sua quarta cidade, depois de ter passado por Rio de Janeiro – onde nasceu -, Belo Horizonte e Santarém, no Pará, por conta da profissão do pai, militar.

Malas & Bagagens: a primeira banda de rock de Cássia Eller (Foto: Arquivo pessoal)
Essa multiplicidade de culturas no currículo foi fundamental para a formação de sua personalidade. O nome da garota era Cássia Rejane Eller e o destino tinha grandes planos para a mulher que ela seria.
O violão foi seu companheiro desde os 14. Tocava principalmente Beatles, cantou em coral, trabalhou em duas óperas e, em 1981, resolveu participar dos testes para um musical montado por Oswaldo Montenegro, o Veja Você, Brasília. A princípio, Cássia foi chamada para integrar o coro, mas depois que Oswaldo a ouviu cantando “Cristal”, tema do espetáculo, decidiu dar um espaço maior e colocá-la logo na abertura, acompanhada por ele ao piano.

A versatilidade de Cássia Eller, nessa época, incluiu ainda a participação em um trio elétrico, o Massa Real, em uma banda de forró e um grupo de samba, onde tocava surdo. A música clássica era também uma paixão, que abandonou, segundo ela mesma, por falta de disciplina. “Não era minha onda. Havia muita disciplina, eu fumava e tomava pinga, queria ficar na turma dos doidões”, disse certa vez, em tom de brincadeira, em uma entrevista para Ziraldo e outros jornalistas da revista Bundas.

A quantidade de trabalhos paralelos a afastou da escola e ela acabou por não concluir o segundo grau. Nada que fizesse muita falta para alguém que acumulou, ao longo da vida, uma cultura vasta de experiências. Longe dos palcos, chegou a se arriscar como garçonete, cozinheira, secretária e até servente de pedreiro, até perceber que o seu negócio era mesmo a música.

O conjunto Malas & Bagagens foi marcante para a consolidação de algo mais profissional. A pianista Dora Galesso foi quem a convidou para se juntar ao grupo, depois de conhecê-la em uma festa – mais precisamente, em uma rodinha de violão. “Sentei perto dela e a gente começou a fazer gracinhas com as músicas, como cantar Ovelha Negra com a voz da Elba Ramalho. Em poucos minutos, viramos amigas de infância”, lembra.

No Malas & Bagagens, Cássia foi além dos vocais: passou a tocar guitarra base e a ter um contato maior com a composição e a estrutura dos arranjos, a partir de uma proposta mais autoral. Foi sua primeira banda de rock, formada ainda pelo guitarrista Antônio Augusto, o baterista Rogério Silva e o baixista Curtis Tipton. Os ensaios eram feitos em um estúdio no prédio comercial Brasília Rádio Center, local frequentado por praticamente todos os roqueiros da época.

Cartas trocadas por Cássia e a amiga Dora em 1986 (Foto: Arquivo pessoal)
Uma das lembranças que Dora traz era a admiração que as duas nutriam pela escritora Clarice Lispector. Cássia descobriu que fazia aniversário no mesmo dia da autora – 10 de dezembro – e passou a elaborar com a colega um complexo plano para ir até a casa de Clarice e cantar embaixo da janela dela.

Tudo foi pensado nos mínimos detalhes. “Aí descobrimos que ela já tinha morrido. A gente ficou numa fossa”, recorda. As cartas e confidências trocadas pelas amigas podem ser vistas ao lado, em destaque.

Dora fala que a simplicidade era uma marca de Cássia desde a juventude. Segundo ela, a fama e o sucesso jamais subiram à cabeça: “A gente se encontrou depois dela famosa e ela disse: ‘bicho, é tão esquisito, as pessoas ficam todas em cima da gente’”. Ao lembrar de quando a amiga ia para todos os lugares usando roupas de chita e sandálias Havaianas, a pianista critica o modo como o show business trata o artista como um produto comercializável, sem valorizar o que há de melhor nele: a autenticidade.

E isso a jovem e irreverente cantora tinha de sobra. Em entrevista à revista Rolling Stone, em 2011, o ator e diretor Marcelo Saback, que fez com ela o musical Gigolôs, ainda em Brasília, contou uma passagem, no mínimo, curiosa. “Na noite de estreia no Teatro Nacional, quando entramos no camarim para fazer uma concentração com os músicos, Cássia estava com o violão a tira-colo, maquiada e de vestido, mas com um dos seios de fora, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Nunca me esqueço da cara dos músicos tentando se concentrar na prece enquanto olhavam aquele seio solto!”, relatou.
Ainda no início da carreira, ela conheceu a estudante de Letras Maria Eugênia, sua companheira por 14 anos, com quem foi casada até falecer, em 2001. Por cerca de seis meses, as duas integraram um assumido triângulo amoroso com a artista plástica Banana.

Com o fim da banda Malas & Bagagens, Cássia passou a ser vista todas as quintas-feiras no bar Bom Demais, que revelou outros importantes nomes, como a cantora Zélia Duncan. Ali, começou a se consolidar a artista que se tornaria conhecida do grande público anos mais tarde: visceral, carismática no palco e com um timbre de voz marcante.

Os shows que ela fazia eram certeza de casa cheia: 180 pessoas dentro do estabelecimento e mais umas 300 do lado de fora acompanhando tudo. A dona do espaço, Cristina Roberto, lembra que a Rotam (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas) era chamada várias vezes pelos vizinhos por causa do barulho. Mas, ao chegar, os policias desciam da viatura, se rendiam ao grupo e acabavam assistindo à apresentação. “Como interromper aquela energia?”, pergunta.

Para Cristina, o que chamava a atenção em Cássia era o quanto, desde aquele momento, ela se via conectada com o que tinha de mais vanguardista no cenário cultural, trazendo diferentes ritmos e interpretações únicas, como o “dueto” que fazia com Nina Simone, imitando a voz da célebre cantora norte-americana. “Nesse tempo, ela já cuspia, mascava chiclete e coçava o ‘saco’”, brinca. “A gente sabia que tinha uma estrela nas mãos.”

Quando não estava trabalhando, havia uma grande probabilidade de estar com os colegas no bar Beirute, até hoje um tradicional ponto de encontro de artistas e intelectuais. Quem lembra bem disso é o garçom Cícero Rodrigues, que trabalha no local há 37 dos seus 65 anos de vida. De sorriso fácil e paletó impecavelmente alinhado, ele gosta de contar histórias e diz que era comum encontrar Cássia rodeada de amigos no boteco.

Cícero, o garçom-amigo, elege “Malandragem” como sua música preferida (Foto: Maíra Streit)
Mesmo depois de deixar a cidade, voltava sempre às pessoas e aos lugares de sempre. Era certo vê-la por ali antes ou após os shows, tomando cerveja de papo para o ar. “Eu entrava no assunto, jogava tampinha na cabeça dela ou colocava nos bolsos dos casacos. A gente brincava muito”, se diverte Cícero, o garçom-amigo.

Questionado se consegue eleger uma canção preferida da cliente famosa, ele cantarola: “Quem sabe ainda sou uma garotinha…”. “Foi a música que mais me marcou. Parece com ela: uma pessoa muito jovem, mesmo depois da maturidade. Tinha o espírito jovem, como eu”, ri.

A letra de Malandragem, lembrada por Cícero, é de autoria de Cazuza e Roberto Frejat e se tornou, sem dúvida, o maior sucesso da cantora desde que foi lançado, em 1994, levando-a ao reconhecimento nacional. Porém, nem só de baladas era feito o repertório de Cássia Eller.

Ela passeava com a mesma desenvoltura indo de Itamar Assumpção a Jimi Hendrix, de Ataulfo Alves a Chico Buarque, de Arrigo Barnabé a Nirvana, de Zé Ramalho a Edith Piaf, passando por Wally Salomão, Djavan, Luiz Melodia, Nação Zumbi, Janis Joplin, John Lennon e tantos outros. Enquadrá-la em um único estilo era uma tarefa impossível, mesmo para os entendedores do ramo.


A vida pós-Brasília

Um dia, Cássia resolveu deixar o Centro-Oeste para alçar voos maiores. Em 1989, foi para São Paulo e começou a divulgar uma fita demo, gravada com a ajuda de um tio. Assinou contrato com a Polygram e conquistou seu primeiro LP, “Cássia Eller”, em 1990.

A partir daí, lançou dez discos, abriu show dos Rolling Stones na turnê brasileira e encontrou o auge do sucesso no Rock in Rio, em 2001, levando o público ao delírio com uma apresentação arrebatadora de Smells Like Teen Spirit.

A interpretação ganhou elogios até mesmo de Dave Grohl, guitarrista e vocalista do Foo Fighters e ex-baterista do Nirvana, que afirmou ter sido a melhor versão cover que ele ouvira até então.

Imprevisível no palco, gostava de provocar a plateia. A cena dela levantando a blusa e mostrando os seios foi imitada por Caetano Veloso, como uma homenagem, dois dias após sua morte. Irreverente e ousada, desafiava os padrões de forma espontânea. Segundo os amigos, Cássia não aceitava nada que a fizesse renunciar a si mesma, se mostrando inteira, com todas as faltas e também os excessos. Usou a música para escapar da timidez, mas continuava a encarar o mundo de soslaio.

A morte, tão indecifrável quanto a vida, chegou para ela no dia 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos. Embora a imprensa tenha alardeado uma overdose, a perícia médica descartou, concluindo que a causa foi um infarto do miocárdio repentino. Uma doença na juventude havia deixado como sequela a arritmia cardíaca.

Artista ficou conhecida pelo talento, irreverência e forte presença de palco (Foto: Divulgação)
Ela falava abertamente sobre drogas e também a homossexualidade, em tempos que a caretice era tão ou mais presente do que agora. Não escondia o fato de ter uma família diferente da tradicional e, em uma decisão inédita, a companheira Maria Eugênia ganhou em 2001 a guarda do filho de Cássia, Francisco, mesmo com a insistência do pai da cantora, Altair Eller, de ficar com o garoto. A medida abriu precedentes para que outros casos parecidos surgissem posteriormente.

Ficou comprovado que as duas mantinham uma relação estável há muitos anos e Eugênia era tão responsável quanto ela pela educação do menino. Chicão, como é conhecido, é fruto do envolvimento rápido de Cássia com o músico Otávio Fialho, que morreu em um acidente pouco antes do nascimento do bebê. E, desde o início, a companheira da artista assumiu os cuidados ao lado dela.

A trajetória da cantora pode ser conferida no documentário Cássia, de Paulo Henrique Fontelle, previsto para ser lançado em janeiro de 2015 (assista ao trailer abaixo). E Cássia Eller, o Musical, com direção de João Fonseca e Vinicius Arneiro, também tem emocionado plateias e pode ser visto no Centro Cultural Banco do Brasil em diferentes temporadas.

A voz grave, inconfundível, ainda ressoa na lembrança dos mais próximos e também dos fãs, assim como a rebeldia, a fragilidade e a força que coexistiam pelo direito a uma vida sem rótulos. As performances cheias de personalidade e a maneira debochada de falar eram um respiro em meio ao culto de celebridades e suas vidas perfeitas. A menina que chegou a Brasília nos anos 80 cresceu como pessoa e artista e a intensidade que carregava dentro de si fez valer os versos escritos por um conhecido compositor da cidade: “A tempestade que chega é da cor dos seus olhos castanhos”.
 

 “Ela era desses talentos que só nascem muito de vez em quando”
Amiga de longa data e para todas as horas, a cantora Janette Dornellas lembra com carinho de Cássia Eller. As duas dividiram a vida e também diversos trabalhos. Um dos mais marcantes foi o show Dose Dupla, em 1985. Na entrevista, ela comenta sobre os momentos importantes na trajetória de Cássia ainda na capital federal.

Cássia e Janette no camarim (Foto: Arquivo Pessoal)

Fórum – Como você e Cássia se conheceram?

Janette Dornellas - Vi Cássia se apresentando no Ginásio de Esportes com o grupo Malas & Bagagens. Fiquei enlouquecida com a voz dela. Pouco tempo depois, fui fazer uma audição para o coro da ópera Porgy and Bess e ela estava na fila do teste, assim como Zélia Duncan e Marcelo Saback, além de vários outros artistas da cidade que já atuavam meio que profissionalmente. Estamos falando de Brasília na década de 80.

Os ensaios da ópera começaram e eu me sentava ao lado dela, que mal falava comigo porque era muito tímida. Um dia, cheguei no ensaio com uma caixa de sapatos que eu acabara de comprar e foi a minha deixa para puxar papo. Ela adorou os sapatos e dali do ensaio fomos para minha casa, de onde ela só saiu mais de um ano depois. É claro, ela ia na casa dos pais dela de vez em quando.

Fórum – Tem algum momento específico que você destacaria do tempo em que conviveram?

Dornellas - Tem muitos fatos marcantes. Acho que o mais marcante foi no dia que eu resolvi assumir que estava apaixonada por ela e, no caminho do ensaio da ópera, parei ela embaixo de um viaduto que estava escuro e a beijei. Acho que nunca tremi tanto na vida!

Outro fato engraçado foi quando acordei um dia de manhã e ela não estava no quarto. Na época, eu também fumava e não tínhamos dinheiro para nada, muito menos para comprar cigarros. De repente, ela volta com um maço de cigarros! “Cássia, onde você arrumou dinheiro?”. E ela: “Ah, fiquei ali na calçada pedindo dinheiro aos passantes para inteirar minha passagem de volta para casa!”. Eu não me aguentei, claro! Morro de rir até hoje quando lembro disso.

Fórum – Qual o legado que Cássia Eller deixa para o Brasil?

Dornellas- Ela era desses talentos que só nascem muito de vez em quando. Ela deixa uma voz linda, que sempre encherá os ouvidos e os corações das pessoas. E também abriu o precedente para que outros casais homossexuais pudessem criar seus filhos."

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