"O documentário 'O riso dos outros' foi feito sob medida para ser visto, revisto e pensado neste momento pós-atentado ao Charlie Hebdo.
Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior
Um filme documentário brasileiro chamado O riso dos outros, de Pedro
Arantes, realizado há dois anos, foi feito sob medida para ser visto,
revisto e pensado neste momento pós-atentado ao Charlie Hebdo.
Ideologias se desfazem em tons de cinza, ou se enfraquecem, e debates
tensos dividem opiniões inflamadas - às vezes até surpreendentes -
discutindo o direito da liberdade de expressão humorística irrestrita e
absoluta de um lado, e, do outro, o dever de respeitar limites – mas
quais? - para fazer humor, caricaturar, ironizar, desconstruir e, no
nível mais pesado, insultar o outro: o ‘diferente’.
O
filme do humorista Arantes, que vem de trabalhos no Canal Brasil e no
Multishow, parece premonitório dos debates que viriam depois e estão aí
agora, nas ruas encharcadas de medo, protestos e passeatas dos cidadãos e
nos discursos cínicos de dirigentes de governos. Aqui, por motivos
diversos daqueles europeus; mas medo é medo - de terroristas,
assaltantes, estupradores, assassinos. E há também os terroristas de
estado sobre os quais pouco, na mídia daqui, se fala.
Produzido
pela TV Câmara, O riso dos outros fez enorme sucesso nas redes sociais,
na época em que foi lançado. Ele traz entrevistas com comediantes,
humoristas, quadrinistas, acadêmicos, um deputado e escritores. O seu
recorte é a comédia stand up, a que vem atraindo muitos da jovem nova
geração de humoristas, nos rastros do trabalho inicial de Woody Allen.
O doc foi o vencedor de licitação da TV Câmara para produção de trabalhos sobre ética. E acabou sendo um trabalho que reacende o debate sobre os limites do humor. Como tema central, a profissão do humorista e, dentro dela, o que seria o polìticamente correto. Os temas que se seguem, no filme, são consequência, mas nem por isto menos importantes. É o olhar do humorista dirigido à tragédia. O diálogo do humor com os preconceitos. E talvez o que mais provoca: “Há sempre uma dose de crueldade no humor” como diz o cartunista Laerte, dos mais brilhantes humoristas brasileiros, teórico e analista do seu ofício.
“Olhar para a tragédia e fazer humor depende da ausência de compaixão,” ele diz. O colega André Dahmer tem outra visão: “Como não ser ofensivo fazendo humor?”
“Existem maneiras de fazer humor sem humilhar os outros,” diz um. E outro: “O humor sempre namorou com a truculência e com a violência.”
Em nome do humor toda piada será válida?
“Chamar um negro de macaco não é e nem nunca foi engraçado”, replica um entrevistado.
Na época, Pedro Arantes declarou, em entrevista, que tinha consciência de que estava mexendo em um vespeiro ao levantar esta questão: até onde vai a liberdade – ou o direito - de expressão através do humor? No filme, ele conversa com a blogueira feminista Lola Aronovich e Rafinha Bastos. Com Laerte, André Dahmer e Arnaldo Branco, o comediante Danilo Gentilli, deputado Jean Wyllis, escritor Antonio Prata, com Fernando Caruso, Ben Ladmer, Nancy People, Marília Meirelles, Hugo Possolo, e vários outros.
“Eu acho,” disse ele, nessa entrevista de 2012: “que não existe tema proibido no humor. Agora, você tem que se cercar de cuidados para poder trabalhar com determinados assuntos.” A observação pode ser estendida e ampliada, do nível intelectual para o da segurança física, no caso do Charlie Hebdo, atingido pela tragédia e pela violência talvez evitadas caso medidas de proteção mais rígidas tivessem sido adotadas para proteger e monitorar uma equipe de humoristas que trabalhavam com personagens de assunto altamente explosivo – os islamitas.
"O que eu acho é que tem setores da sociedade que são mais organizados que outros,” observa Arantes. “Então, parece que fazer piada de anão é menos ofensivo do que fazer piada com negros. Mas a verdade é que os negros são um grupo muito melhor organizado historicamente do que o grupo dos anões. É só isso.”
Além do fato de os primeiros contarem com recursos legais mais à mão para exigir retratação e punição, na justiça, do que os outros.
“Em determinado momento, tal grupo histórico pode estar mais ou menos organizado, o que muda o quanto você pode falar dele. Por exemplo: hoje em dia, fazer piada de judeu é muito complicado. Mas 50 anos atrás era banal fazer piada com judeus, por mais pesada que fosse a piada. Então, se construiu uma questão que impediu as pessoas de fazer esse tipo de piada. Mas é tudo uma construção e só depende do tempo.”
No mar de ofendidos, de intolerantes, de muita raiva e ódio, como agora, “sempre vai haver alguém ofendido quando se faz uma piada. A questão é como a gente negocia essa ofensa historicamente," diz Laerte.
Sempre haverá ofendidos nas multidões de crentes porque, afinal, temos todos, religiosos ou não; iconoclastas, blasfemos, céticos, progressistas, ateus, reacionários e conservadores, cínicos ou indiferentes, temos todos uma fé.
Duas observações de Arantes permanecem, a propósito de O riso dos outros, um filme (50 minutos de duração) que não deve deixar de ser (re)visto. Primeira: “Ninguém deve ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa.” Segunda: “Às vezes você vai rir de alguma coisa e depois vai pensar que não deveria ter feito isso. (Mas) não é para ninguém ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa. Não precisa se culpar; basta refletir.”
A observação da comediante stand up Marcela Leal pode ser uma boa conclusão: “As pessoas querem rir e liberar endorfina porque a vida delas é um saco”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário