Anne, personagem
de Juliette Binoche em ‘Elles’
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Matheus Pichonelli,, CartaCapital
“Como a maioria das crianças da minha rua,
passei a maior parte da infância na companhia de minha mãe. Não só da minha,
mas de toda a vizinhança. Era a mãe quem acordava antes de todo mundo. Quando
eu pensava em abrir os olhos, o café estava pronto, à mesa. Às vezes era ela
quem nos levava até a escola, às vezes era a mãe de alguém. Lotávamos o carro
e, dali em diante, onde quer que se olhasse, haveria sempre uma mãe ao nosso
lado até o fim do dia. Quando uma cruzava com a outra, era o terror; elas
passavam longos e longos minutos em conversas sobre assuntos não muito
variados: os filhos que estavam com dor de ouvido, os maridos que haviam
adorado a receita do último bolo, a liquidação das lojas de sapato.
Quase nunca falavam das próprias aventuras
– ao menos não em voz alta ou perto dos filhos. De vez em quando elas se
reuniam em casa para colocar os papos em dia e eu ficava só espiando. Não
deviam estar distantes da raia dos 40 anos, mas pareciam envelhecidas ou
cansadas; no ambiente familiar, usavam chinelos de dedos, batom era coisa rara,
e os cabelos estavam sempre presos. As mães da minha infância tinham as feições
mais parecidas com dona Florinda do que com Sarah Jessica Parker.
Apesar de passar 90% do meu tempo ao lado
da mãe, ou das outras mães da rua, vinham de meu pai as grandes influências.
Era dele a coleção de livros, CDs e LPs – os que sobravam. Entrar no quarto de
som e TV era entrar num mundo criado e administrado à imagem e semelhança dos
homens da casa (a novela talvez fosse o único programa para todos os gostos; os
outros eram apreciados em horários diferentes, incompatíveis). Os homens de
nossa rua ouviam Beatles; as mulheres, Roberto Carlos ou músicas da igreja.
Um dos raros pontos de intersecção entre os
dois mundos aconteceu certa vez em que o aparelho de som tocou Woman, a
música-homenagem de John Lennon a Yoko Ono. Estava sozinho naquele quarto
inviolável quando uma vizinha abandonou a conversa com minha mãe na sala de
estar e se sentou do meu lado, em silêncio. Ela ouviu a música inteira como se
contivesse um choro. No fim, disse não ter palavras para contar o quanto amava
aquela música – na qual o eu-lírico agradecia as mulheres, todas as mulheres,
por terem lhe ensinado o significado da palavra “sucesso” (naquele tempo ainda
rezava a lenda odiosa de que por trás de um grande homem havia sempre uma
grande mulher).”
Artigo Completo, ::AQUI::
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