Léa Maria Aarão
Reis, Carta Maior
Um filme de formação que narra a trajetória de uma adolescente passando
à idade adulta e dura três horas. Com uma mega sequência de dez minutos
absolutamente extraordinária em sua beleza na qual duas atrizes jovens e lindas
transam apaixonadamente à luz de velas fazendo as amantes protagonistas da
história, incansáveis, com direito a gritos, palmadas, êxtases e muita
transpiração. Uma Palma de Ouro em Cannes concedida pela unanimidade do
júri e entregue por Steve Spielberg com elogios rasgados ao diretor e a essas
duas atrizes, coisa raríssima: a única mulher a receber o premio, no passado,
foi a neozelandesa Jane Campion (de O piano). E um cineasta
nascido na Tunísia, cidadão francês, filho de operário na construção civil, que
vive com a família em Belleville, bairro popular multiétnico de Paris, a
mulher, a atriz Ghalia Lacroix e sua co-roteirista, e dois filhos gêmeos.
Mais: um tiroteio de lamúrias, queixas, acusações e insultos logo após
os beijos e abraços no palco do palmarès, na Croisette, trocados entre
uma das duas jovens atrizes, Lea Seydoux - herdeira da família proprietária da
Pathé, a legendária empresa de cinema francês, e membro do clã milionário dos
Schlumberger, da indústria do petróleo - e Kechiche, o diretor do filme.
Como cerejas do bolo de escândalos, os protestos de militantes femininas
gays contra a produção inspirada vagamente na graphic novel francesa de
Julie Maroh, mais doce e menos “crua” que o filme – dizem. E o voyeurismo
que Azul suscita entre solitários e não-solitários e as velhas e
sempiternas manifestações em nome de uma moral repressiva que, ainda bem, já
morreu há muito tempo – mas que eles não percebem.
Abdellatif Kechiche é mais conhecido dos cinéfilos do que das grandes
plateias. Seu filme não necessita de ingredientes explosivos fora da tela para
se manter nas manchetes, desde maio, ao ganhar o premio máximo de Cannes até
agora, quando chega ao Brasil.
Azul é a cor mais quente é belíssimo. Kechiche fez
uma das mais pungentes histórias de amor mostradas pelo cinema sem concessão a
qualquer tipo de romantismo, barato ou não.
Apesar da duração que poderia ser excessiva (mas não é) tem uma
narrativa fluente e quase impecável. Praticamente dividido em capítulos (tanto
que no título original há o adendo chapître un et deux) o mais
surpreendente nele é o lançamento, em grande estilo, de uma menina de 19 anos,
francesa de origem grega com o nome de Adèle Exarchopoulos – parisiense filha
de pai professor de violão e mãe enfermeira - sobre quem ainda vai-se ouvir
falar muito como uma das mais brilhantes atrizes do cinema, caso consiga
encaminhar a carreira com rigor.
Sem diminuir o talento de Kechiche, a garota carrega três horas de filme
com uma atuação madura, repleta de nuances, de semitons experientes, com os
sentimentos sinceros de perplexidade próprios de alguém de sua idade (a
personagem é uma estudante propositadamente chamada Adèle por Abdellatiff) que
se encontra em dúvida sobre o prazer emocional, existencial e sexual que pode
usufruir melhor na companhia de meninos ou com as meninas. Adèle/personagem vem
de uma geração em que escolher a identidade do sexo é, cada vez mais, uma
questão natural: este é um ponto central do filme.
Apaixona-se quando conhece Emma (Lea Seydoux), moça mais velha, de
cabelos pintados de azul, uma artista plástica em início de carreira.
O tema é este: a história do primeiro amor – um amor radical - de uma
menina inteligente e sensível buscando estar à vontade na sua opção sexual.
Como
pano de fundo, mas periférico, não essencial, a discriminação agressiva das
colegas de escola mobilizadas pelas escolhas de Adèle. O assédio natural dos
meninos. As famílias das duas namoradas, cada qual conhecendo a parceira da
filha – em duas sequências memoráveis, sutis e simbólicas. Uma, a família de
artistas e de intelectuais libertários. A outra, de pequenos burgueses não
menos afetuosos e receptivos, porém simples e preocupados com o futuro e com a
segurança do emprego.
Os demais capítulos mostram o começo da vida do casal – Adèle e Emma vão
viver juntas -; o entusiasmo da paixão com o sexo que será consumido entre as
duas; a acomodação; as diferenças naturais nas expectativas de cada uma; a
traição pelo esgotamento de sentimentos e de sexo; e, por fim, o drama da
separação. Em um epílogo com sequências exemplares (o reencontro, anos depois,
das duas moças num café, é inesquecível; Adèle ainda apaixonada por Emma e Emma
já vivendo um novo caso) e a menina, agora adulta, no vernissage da
ex-parceira.
Em ambas sequências, Adèle/atriz, dá um show.
Incluir a atriz Lea Seydoux na Palma deste ano sugere mais uma ideia de
delicadeza do júri em incluí-la no palmarès do que de mérito pelos
recursos dramáticos. Embora se saia muito bem com a sua Emma, um personagem
forte e complexo - a moça dos cabelos azuis – ela, aqui, é uma atriz degrau
para o espetáculo de eficiência dramática da menina Exarchopoulos.
No fim das contas, fora da tela, Lea também não está se saindo tão bem
quanto Adèle, que acompanha Kechiche na turnê de lançamento do filme por
dezenas de países - ocidentais, é claro. (Nos países árabes, Abdellatiff diz
não se preocupar com a censura: “Os meninos vão baixar o filme de qualquer
modo.”)
Lea se queixa de ter sido tratada como “prostituta” pelo diretor e de as
filmagens de La vie d’Adéle terem sido motivo de grande
“sofrimento”. Declarações feitas depois dos carinhos de palco, no Grand Palais
de Cannes.
Despeito por não ser agraciada com a mesma enxurrada de elogios à sua
companheira?
Mas o diretor da herdeira Seydoux não deixa por menos e responde,
alimentando o bate-boca, em uma entrevista ao The Guardian: “Quando se
trata de atuar eu acho a palavra ‘sofrimento’ indecente. Atores não ganham o
mesmo que trabalhadores braçais, por exemplo. Costumam ser o centro das atenções,
voam em primeira classe, hospedam-se em hotéis cinco estrelas que são
construídos por operários; e são servidos por empregados que limpam o que sujam
em seus apartamentos. Seu trabalho é bem agradável porque atuar, representar, é
como um jogo e enriquece o indivíduo. Muito diferente do trabalhador que volta
para casa exausto, todos os dias, só pensa em comer espaguete e em cair na cama
para dormir.” (Em dois momentos de Azul é a cor mais quente o espaguete
aparece, insistente, como definição gastronômica de luta de classes.)
Por mais dolorosos
que seja fazê-los, os filmes de Kechiche crepitam, como observam os ingleses, de energia e
exuberância. Vênus Negra, O segredo do grão, A esquiva, A
culpa de Voltaire são seus trabalhos anteriores. Todos, reflexões
sobre a classe operária.”
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