Tilda Swinton vive a vampira leitora em "Amantes Eternos", de ritmo lento e música hipnótica / SAkis Mitrolidis / AFP |
Thomaz Wood Jr., CartaCapital
Uma sequência do documentário Behind Jim Jarmusch,
de Léa Rinaldi, mostra o cineasta norte-americano a caminhar pelas
estreitas ruas de Sevilha durante as filmagens do longa-metragem Os Limites do Controle, lançado em 2009. Nos labirintos da cidade ibérica, Jarmusch medita sobre o prazer de andar a esmo.
Então, inverte a máxima atribuída a Sêneca,
revelando seu princípio criativo: é difícil se perder quando você não
sabe aonde vai. Para Jarmusch, criar é evitar planos rígidos, é dar
chance para que a interação artística produza novos sentidos. A
declaração pode ser, entretanto, meias- -verdades. O cineasta não segue
uma rota precisa, mas tem senso de direção e sabe como avançar, com seu
grupo de atores, técnicos e músicos, por territórios inexplorados,
dividindo o prazer da jornada com sua fiel, se não numerosa, audiência.
Jarmusch nasceu em Ohio, em 1953. Consta
que conheceu a Sétima Arte na infância, na plateia suburbana de filmes
B. Flertou com a literatura e, na adolescência, ameaçou virar teólogo.
Exilou-se nas margens culturais e desembarcou em Nova York, para ser
poeta. No fim da faculdade, foi a Paris e internou-se por meses na
Cinemateca Francesa. Voltou à América decidido a fazer cinema.
Conheceu Tom DiCillo e Spike Lee, e
frequentou o lendário CBGB, templo da música e da cultura alternativa
dos anos 1970, e além. Foi assistente de Nicholas Ray, mas consta que
não conseguiu se titular. Seus primeiros filmes foram ignorados. Em1984,
sua obstinação produziu Estranhos no Paraíso, premiado em Cannes, conquistou um séquito de adoradores e ajudou a criar o conceito de cinema independente.
Seu último filme reflete seu princípio criativo. Amantes Eternos
conta a história de dois amantes vampiros: Adam (Tom Hiddleston) e Eve
(Tilda Swinton). Como muitos casais contemporâneos, Adam e Eve vivem em
cidades diferentes. Ele reside em Detroit, mostrada em cenas noturnas
como uma urbe semiabandonada, um fantasma a lembrar pelas ruínas décadas
mais felizes.
Ela habita Tanger, no Marrocos, cortada por meandros e
estreitas alamedas, cidade encontro de diferentes culturas e
civilizações. Estão unidos por um relacionamento de séculos e pela arte.
Adam é um músico de gênio, incomodado por ter de se manter a distância
da ribalta. Coleciona instrumentos raros, cuja história e papel em
epifanias criativas bem conhece e venera. Eve é uma leitora ávida, a
devorar obras requintadas de diferentes épocas e culturas.
Amantes Eternos é
mais um produto do estilo pessoal de Jarmusch, surgido nos anos 1980 e
destilado nas últimas décadas. Há uma história e uma cronologia de
fatos, mas não é o que importa. Mais relevantes são os personagens, seus
humores e seus comportamentos. O ritmo é deliberadamente lento e as
imagens vêm embaladas por uma trilha sonora quase hipnótica, convidando à
contemplação. A combinação precisa entre enredo, música e imagem vem
desde seus primeiros filmes. Daunbailó, de 1986, traz longas
cenas de New Orleans e dos pântanos da Louisiana, acompanhadas por
músicas de Tom Waits e John Lurie, que são também atores centrais do
filme, formando com o italiano Roberto Benigni um trio desajustado de
fugitivos.
Jarmusch sempre se manteve à parte,
estética e comercialmente, da produção industrial cinematográfica
norte-americana. Seu olhar sobre o próprio país é o de um estrangeiro,
senão um alienígena, o que ajuda a explicar o respeito europeu por sua
obra. Seus personagens são indivíduos deslocados, marginalizados,
frequentemente fracassados, mas capazes de gerar empatia com o público.
A opção por fazer um filme de vampiros
pode causar estranheza, mostra porém total sentido, desde a primeira
cena. Para o diretor, há no mundo um estoque limitado de histórias que
podem ser contadas. O que pode mudar é a forma de contá-las. O que
importa para ele não é o ponto de partida ou a origem das ideias, mas
onde se consegue chegar com elas, uma máxima emprestada do colega
Jean-Luc Godard. Daí seu passeio por diferentes gêneros, sempre
reinventados: western, filme de ação e agora um romance de vampiros.
Amantes Eternos segue
a tradição dos filmes do diretor, mas é marcado por algumas mudanças.
Foi filmado em tecnologia digital, uma contradição aparente para um
cineasta que prefere o celuloide, não usa computador para escrever suas
histórias e declara não possuir uma conta de e-mail. Outra mudança é que
os personagens estão mais explicitamente frustrados e desencantados com
os seres humanos, cuja existência parece seguir rota de colisão com o
planeta e com o próprio sentido de humanidade. Uma tese implícita na
narrativa é que todos os grandes artistas da humanidade foram vampiros
ou se apropriaram das criações de vampiros. O ator inglês John Hurt
interpreta Christopher Marlowe, dramaturgo inglês, contemporâneo de
William Shakespeare, para quem declara ter cedido algumas obras.
Há alguns seres humanos de boa índole no filme. São, em
geral, entretanto, referidos pelos personagens principais como zumbis,
seres sem vontade própria ou senso de propósito, a flanar pelo mundo
apenas para responder a seus instintos basais, enquanto conspurcam o
ambiente com ruídos e restos.
Como notou o crítico A. O. Scott, do New York Times, o
vampirismo do filme serve como metáfora, não para sexo ou desejo, como é
usual no gênero, mas para a paixão pela criatividade. Adam e Eve são
seres remanescentes de uma aristocracia de estetas, a cultivar a beleza
em todas as suas formas, um grupo formado por escritores, poetas e
músicos. Uma minoria isolada, cercada por gentios que perderam a
capacidade de apreciar a arte, e consomem seu tempo com frivolidades, a
tornar o mundo ao redor cada vez mais feio, sujo e inóspito.
Sua perspectiva histórica e seu amor pela arte e pela
ciência impedem que os amantes matem suas vítimas para obter sangue.
Eles conservam impulsos vampirescos naturais, mantidos até certo ponto
sob controle. O casal obtém seu suprimento vital por outras fontes,
cercando-se de cuidados para evitar sangue contaminado pelos zumbis.
Em uma cena
passada em Detroit, Adam critica, irritado, a profusão de fios e
conexões de uma instalação elétrica residencial, um atestado da
incapacidade humana de fazer os sistemas mais prosaicos de forma
elegante e funcional.
Se o vampiro esteta vivesse em São Paulo, sofreria
a mais profunda depressão. Em outra cena, também ocorrida em Detroit,
Adam mostra a Eve as ruínas de um outrora majestoso teatro, a
testemunhar a decadência que tomou conta da cidade, destruindo suas mais
belas conquistas civilizatórias.
Scott sugeriu que o filme talvez reflita o
conservadorismo geracional do cineasta, ao retratar os jovens como
criaturas aceleradas, distraídas por seus dispositivos eletrônicos,
incapazes de apreciar os prazeres sensoriais e intelectuais mais densos
que somente uma existência calma e livre dos impulsos imediatos pode
proporcionar. Sim, talvez seja conservadorismo, mas é mais provável que
seja uma tomada de posição contra a barbárie que contamina os nossos
tempos.
Confira o trailer de Amantes Eternos:
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