Em "O Destino de Júpiter" os Wachowski esquecem a pílula vermelha do Gnosticismo Pop

Wilson Roberto Vieira Ferreira, Cinegnose

"Com o filme “O Destino de Júpiter”, mais uma vez os irmãos Wachowski criam uma fábula gnóstica pop. E dessa vez sincronizando um evento astronômico (a ascensão do planeta Júpiter nos céus em fevereiro) com uma releitura do mito gnóstico da Criação, Queda e Ascensão do “Apócrifo de João” escrito em 150 DC. Tal como na “Trilogia Matrix”, a humanidade é prisioneira dos Demiurgos para ter sua energia drenada. Lá em Matrix presos em incubadoras.  Aqui em “O Destino de Júpiter” para serem semeados e colhidos por uma casta real alienígena em uma espécie de gigantesco latifúndio cósmico. Porém, dessa vez os Wachowski fizeram grandes concessões à Hollywood: a pílula vermelha da gnose que despertava para a Verdade da Matrix desapareceu para ser substituída pelo obediente retorno do espectador à ordem.

Originalmente O Destino de Júpiter (Jupiter Ascending, 2015) tinha lançamento previsto para junho do ano passado. Foi adiado e, “coincidentemente”, só entrou em cartaz em fevereiro desse ano, no momento em que o planeta Júpiter ascendeu à posição oposta ao Sol – Júpiter sobe no céu no momento em que o Sol se põe, brilha mais alto à meia-noite e se põe em torno do nascer do Sol. Júpiter nesse momento está mais próximo da Terra, aparecendo maior e mais brilhante.

Em se tratando dos irmãos Wachowski e pelo emaranhando de simbologias gnósticas e esotéricas que o filme explora, tudo NÃO é mera coincidência. Andy e Lana Wachowski sabem o que estão fazendo: com essa sincronia entre os eventos cinematográfico e astronômico, reforçam ainda mais a mitologia por trás do verdadeiro delírio visual de um filme que parece que fundiu Matrix, Star Wars e Flash Gordon dentro de uma gigantesca space opera.

O Destino de Júpiter confirma que os Wachowski são os pais do Gnosticismo Pop hollywoodiano, onde a trilogia Matrix foi a obra seminal: conciliar camadas de simbolismos com muitas cenas de perseguição, lutas e uma massa de efeitos em CGI.

E de certa forma todas as narrativas mitológicas gnósticas sobre emanações divinas de aeons, batalhas cósmicas entre o Bem e o Mal, deuses demiurgos enlouquecidos nada simpáticos com a humanidade e histórias de entidades divinas decaídas que buscam a redenção tem um forte appeal visual e cinemático – talvez essa seja uma das razões para Hollywood flertar com o Gnosticismo: cada manuscrito apócrifo da chamada Biblioteca de Nag Hammadi renderia dezenas de roteiros e adaptações para o cinema.

Como veremos, a diferença de O Destino de Júpiter para a trilogia Matrix começa com a mudança da abordagem da mitologia Gnóstica: enquanto lá na trilogia tínhamos o TecnoGnosticismo (o homem prisioneiro em uma simulação tecnológica), na produção atual o viés é AstroGnóstico – a humanidade como resultante de uma experiência de alienígenas superiores ou o herói como alguém que está na Terra mas não pertence a este planeta.
Tanto a trilogia Matrix quanto O Destino de Júpiter abordam a essência do drama cósmico gnóstico: a humanidade é aprisionada em um cosmos hostil para servir de fonte de energia para os demiurgos manterem um universo defeituosos em funcionamento – no caso do filme atual, servir de matéria-prima para a produção de um soro que garante a imortalidade de uma casta real.

Mas a abordagem resulta bem diferente: enquanto na trilogia os heróis Neo e Morpheus querem liderar uma revolução para fazer a humanidade despertar (a “gnose”), em O Destino de Júpiter a heroína apenas quer salvar sua família e voltar para casa. A salvação do planeta é um efeito colateral.

O Filme


Os terráqueos não sabem, mas o seu planeta e inúmeros outros na galáxia foram semeados por famílias de uma casta real alienígena com a finalidade de serem colhidos assim que chegarem a um “estado darwiniano de perfeição”, maduros para a colheita – são sacrificados e sua energia coletiva drenada para a fabricação de um soro da juventude que lhes permite viver para sempre. Quando a matriarca da Casa de Abrasax, a mais poderosa das dinastias aliens, morre seus três filhos (Balem, Kalique e Titus) entram em conflito pela herança de uma gigantesca unidade de produção em Júpiter.

Enquanto isso, alheia a tudo, Júpiter Jones (Mila Kunis) é uma humilde empregada que ganha a vida limpando banheiros de hotéis em Chicago. Filha de um astrônomo russo, assassinado em seu país, veio para os EUA com a família de sua mãe. Mas ela também não sabe que seu mapa genético é idêntico à falecida matriarca da Casa de Abrasax. Poderíamos chamar isso de “reencarnação”, mas o membros da realeza alien chamam de “recorrência”, uma improbabilidade estatística que pode colocar em risco a disputa da herança entre os membros da dinastia Abrasax: tecnicamente, Júpiter Jones poderia reivindicar o controle das vastas extensões do verdadeiro latifúndio galáctico de planetas semeados. Para eles, os genes não têm uma mera função biológica, possuem um grande significado espiritual.

O que faz a galáxia inteira colocar uma recompensa pela sua cabeça. Mas Júpiter será protegida por um guerreiro interplanetário geneticamente modificado chamado Caine (Channing Tatum) que  revelará o destino reservado a ela pela sua assinatura genética. Tito enviou o Caine à Terra para resgatar Júpiter e salvá-la de outros assassinos mercenários, mas ele também tem outros planos sinistros para se desfazer dos dois e vencer a disputa pela herança e o controle da Casa de Abrasax.

O mito da Criação, Queda e Ascensão
Se em Matrix os irmão Wachowski abordaram a ontologia gnóstica (a realidade como uma ilusão fabricada da qual devemos despertar), em O Destino de Júpiter vão explorar o mito da Criação, Queda e Salvação que nos aspectos principais se assemelham ao clássico Apócrifo de João da Biblioteca de Nag Hammadi, escrito em torno de 150 DC.

Lá encontramos a dramática descrição da criação desse cosmos a partir da emanação do aeon de Sophia que decaiu da Plenitude (o Pleroma) para as esferas materiais, produzindo uma espécie de forma híbrida de consciência, por assim dizer um “filho bastardo”: o Demiurgo – no filme, a Casa de Abrasax e seus membros corruptos. Divindade enlouquecida, que acredita ser a única divindade, cria o homem para torna-lo prisioneiro da sua criação imperfeita (porque tende para a morte e a entropia).

Nesse universo imperfeito estão prisioneiros Sophia e a humanidade. Sophia consegue ascender de volta ao Pleroma e a humanidade mantém-se prisioneira porque o Demiurgo necessita da “fagulha de Luz” presente no homem para por esse cosmos material em funcionamento – ecos desse simbologia nos seres aprisionados em incubadoras em Matrix e a colheita periódica da “energia coletiva” em O Destino de Júpiter.

A morte da Matriarca da Casa de Abrasax e a sua “reencarnação” (recorrência) no nascimento Júpiter Jones na Terra e a sua posterior “ascensão” a Júpiter é a própria narrativa gnóstica da Queda e Ascensão de Sophia, presente desde o Apócrifo de João ao Rito Escocês Antigo da Maçonaria (R...E...A...A...) que descreve essa ascensão em trinta graus simbólicos e mais três filosóficos de elevação espiritual.

Spoilers à frente

Mas curiosamente param aí as analogias. Como apontamos acima, se em Matrix os Wachowski deram uma atenção especial ao despertar de Neo (a gnose, representada pela escolha que o protagonista deveria fazer entre as pílulas vermelha e azul), em O Destino de Júpiter o significado mítico da ascensão no Apócrifo de João é eliminado.

Acompanhamos todo o filme a protagonista Júpiter ser arrastada de um lugar para o outro pelo salvador Caine. Juntos desmantelam o latifúndio cósmico. E depois de tudo a família de Júpiter é devolvida à Terra em segurança sem a memória do seu desaparecimento enquanto Júpiter continua sendo a rainha. Um final bem diferente de Matrix onde havia uma proposta revolucionária da gnose ser a forma de despertar para a Verdade. Em O Destino de Júpiter todos na Terra continuam alheios à tudo e voltam para suas vidas como se nada tivesse acontecido. 

Embora explicitamente os Wachowski  tenham se inspirado na mitologia de Sophia (como veremos, a palavra “Abrasax” é uma pista disso), ignoraram o principal significado: Sophia é a história de um exílio, mas também de como se rebela contra o Demiurgo ao tentar inspirar a gnose que faz o homem despertar do esquecimento.
 
Aqui há uma evidente concessão à Hollywood: o filme se rende ao clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”: a tensão entre a fantasia da liberdade e o restabelecimento da ordem. Sonhos, loucuras e desejos  proibidos são desenvolvidos até certo ponto para não incomodar a adaptação do espectador à realidade após o encerramento do filme – sobre esse conceito clique aqui.

A Casa de Abrasax

“Abrasax” é uma evidente forma alterada do termo “Abraxas” – termo usado pelos antigos gnósticos para expressar o nome indizível do Ser Supremo e para simbolizar o seu poder Solar. Nas origens, Abraxas é um nome grego, ABΣPΞ. Soletrado, somaria 365:

A = 1, B = 2, Σ = 200, P = 100, Ξ = 60 = 365

Para o professor gnóstico Basilides (séc. II da Era Cristã), o Demiurgo teria criado “365 céus”. Para ele, o papel da vinda de Cristo à Terra teria sido o de alertar de que a Criação pertencia a um Deus mais alto, Abraxas, e não de um Demiurgo que teria criado esses 365 céus como uma cópia imperfeita da Plenitude.

Ironicamente em O Destino de Júpiter a casta real de Demiurgos se autodenominam como “Casa de Abrasax”, conotando essa tentativa frustrada de divindades corruptas copiarem nesse plano físico a Plenitude do Abraxas. E essa pluralidade de “céus” corresponderia aos planetas semeados pelo cultivo do soro da imortalidade. Será que também semearam 365 planetas?  

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