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"Não há páginas da história da escravidão que não nos envergonhem.
Esta, talvez ainda pouco abordada, trata dos dissimulados nomes
que os donos das embarcações davam as seus infernos flutuantes, os
navios negreiros — ou navios “tumbeiros”, que vem de tumba, sinônimo de
caixão.
As histórias desses barcos de nomes
revoltantes estão expostas no mais amplo estudo do comércio
transatlântico de seres humanos, iniciado ainda na década de 1960, e
reunido pela Universidade de Emory (EUA), no site slavevoyages.org. É partir desta pesquisa que reunimos aqui uma lista com alguns dos mais nojentos nomes encontrados.
Wilson Prudente é
relator da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB do Rio de
Janeiro e um dos brasileiros descendentes de escravos mais engajados em
recuperar a história do povo de seus antepassados africanos. Ele garante
que os abjetos nomes desses barcos não eram por acaso: “Eram para
intimidar.”
Daniel Domingues da Silva faz
parte da equipe responsável pela pesquisa. Ele garante que a escolha
dos nomes era feita pelo dono do barco — nunca por seu capitão. Daniel,
no entanto, ressalta que havia, entre muitos comerciantes de escravos,
uma crença doentia de que eles estavam fazendo “um bem para os escravos”.
— Eles
pensavam que estavam ajudando a resgatar a alma dos africanos para o
reino de Deus, ou seja, trazendo eles de uma terra onde o paganismo
imperava para a cristandade.
>>>Clicando
no nome dos barcos, você acessa o link da pesquisa no site
slavevoyages.org. Lá, você pode cruzar a pesquisa com outras
variáveis.<<<
1. Amável Donzela
(1788 a 1806)
Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.838
Escravos mortos durante a viagem: 298
Escravos desembarcados no Brasil: 3.540
Tripulação (média) = 31
Foi no dia 2 de outubro de 1788 que o
capitão José de Azevedo Santos e mais 33 tripulantes deixaram Portugal
para inaugurar uma lamentável história a bordo da galera Amável Donzela. Nos
7 anos seguintes, o barco realizou 7 viagens assassinas, sempre
traçando o mesmo caminho de horror: de Lisboa para o porto de Cacheu, no
centro-oeste africano, e de lá, entupido de seres humanos acorrentados,
para o Maranhão, no Brasil.
À época, Cacheu era uma pequena cidade que
se formava em volta do movimentado porto da primeira colônia fundada
pelos portugueses na região, onde hoje é Guiné-Bissau, a Guiné
Portuguesa. Desde 1675, havia em Cacheu um intenso comércio
escravagista, demérito do principal fomentor do setor por ali, a
Companhia de Cacheu.
Os escravos eram subjulgados em uma região
um pouco mais ao norte, na Senegâmbia (hoje: Senegal e Gâmbia). Não era
fácil vencer os escravos na Senegâmbia, região com alto índice de
muçulmanos. O historiador Daniel Domingues da Silva, um dos responsáveis
pelo estudo, aponta que a rejeição à escravidão em áreas muçulmanas era
muito mais violenta do que em outras partes da África.
No Brasil, o destino dos homens,
mulheres e crianças desta região era o Maranhão, onde serviriam como
mão de obra para a cadeia do algodão, que vigorou no norte do Brasil. A
produção era exportada principalmente para a Grã-Bretanha, em pleno
desenvolvimento industrial.
É claro que ninguém tinha
direito a um enterro. Para evitar contaminação no barco, o que
significaria perda de mais mercadoria, os corpos eram jogados no mar.
Wilson Prudente garante que, muito adoentados, alguns escravos eram
amarrados a pedras e lançados ao fundo do oceano ainda vivos.
Entre 1792 a 1796, o capitão Joaquim Adrião Rosendo, que boa pessoa não deveria ser, liderou a Amável Donzela.
Passava quase metade do ano no trajeto Europa — África — Américas. Foi o
fim da primeira era do barco, que só voltaria ao comércio negreiro em
1804, ainda mais cruel e assassino, já com outro itinerário.
Em vez de passar em Cacheu para pegar escravizados da Senegâmbia, o caminho da Amável Donzela agora
seguia para Benguela e Luanda, em Angola, ainda mais
abarrotados — desta vez com humanos do Centro-Oeste da África, área mais
profundamente dominada pelos portugueses em toda a costa atlântica da
África à época. A política escravagista portuguesa na região,
especialmente em Luanda, deu-se por uma complexa parceria com o reino do
Congo, que esfacelou o reino do N’dongo a partir do século 16. Presos,
hereges, adúlteros, segundo o historiador Daniel Domingues da Silva, já
eram escravizados na região ainda antes da chegada dos portugueses.
Toda essa história, certamente, facilitou o trabalho assassino da Amável Donzela em
1804 e 1805, em direção ao Rio, e em 1806, em direção ao porto de
Pernambuco. Começava, justamente nesta época, justamente neste trajeto
Angola — Brasil, o maior boom escravagista
de toda história do Atlântico. Apenas nessas três últimas viagens do
barco, 1.704 seres humanos foram acorrentados e embarcados a força para a
América.
Da África a América, a Amável Donzela agora
era mais lenta. Em vez dos 30 dias médios da década passada, a viagem
passou para cerca de 55 dias. Mais tempo de horror e morte dentro do
barco. Só nestas últimas três travessias, 170 morreram, 10% dos embarcados.
2. Boa Intenção
(1798 a 1802)
Bandeira: Portugal
Rota: Angola — Brasil
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 2
Escravos transportados: 845
Escravos mortos durante a viagem: 76
Escravos desembarcados no Brasil: 769
Tempo de travessia África/América (média): 51 dias
1798 foi um ano marcante na história da escravidão brasileira. Na
Bahia, a Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos
Alfaiates, não tinha a reivindicação abolicionista como prioridade, mas
sim a independência brasileira (e baiana) de Portugal. De qualquer modo,
a presença de alguns escravos (especialmente os mulatos, já
brasileiros) na mobilização revestiu a luta de um caráter popular.
Os agitadores principais foram duramente
punidos pelo governo colonial brasileiro/português. Líderes foram
executados em praça pública. Muitos escravos foram açoitados no
Pelourinho.
Outra condenação levou o escravo alfaiate Cosme
Damião Pereira Bastos a se tornar um dos poucos descendentes de
africanos que vieram ao Brasil e retornaram ao continente natal de sua
família. É claro que ele não foi a passeio, encontrar a raiz dividida.
Preso, torturado, foi condenado a dez anos de degredo numa prisão de
Benguela, em Angola.
Talvez Cosme Damião tenha cruzado no caminho com mais um barco negreiro de nome safado, a galera Boa Intenção, que
em setembro de 1798 deixou Luanda e, durante 42 dias, fez uma viagem
infernal até a cidade de Rio de Janeiro, já capital da Colônia.
O capitão do barco Marcos Guimarães Costa
deu seu inescrupuloso assento para Anacleto Ferreira Vasconcelos, que
conduziu a segunda viagem da Boa Intenção ao
Rio de Janeiro, de janeiro a março de 1802. Foi uma jornada brutal.
Primeiro embarcou escravos em Benguela. Depois, provavelmente já
superlotado, embarcou mais escravos em Luanda.
Em 60 dias de um longo martírio que não se encerraria
na chegada, 43 africanos morreram e foram atirados ao mar. Só em 1802, a
estimativa é que 88.814 escravos tenham desembarcado no Brasil, a
maioria mercadoria de barcos ingleses. É o nono ano mais lamentável do
comércio escravista brasileiro.
3. Brinquedo dos Meninos
(1800 a 1826)
Bandeira: Portugal/BrasilO barco tinha fácil entrada em diversos portos africanos. Em 1800, a viagem começou em Costa da Mina, uma intensa região que hoje abrigaria países como Nigéria, Gana e Benim. Comerciantes de Salvador tinham íntima relação profissional com os traficantes da Costa da Mina, tanto que Lisboa, por vezes, teve que interferir nesse comércio direto para evitar perda de arrecadação de impostos.
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.179
Escravos mortos durante a viagem: 220
Escravos desembarcados no Brasil: 2.959
Tempo de travessia África/América (média): 70 dias
Destino de todas as viagens: Bahia
Em 1801, a partida do Brinquedo dos Meninos deu-se em São Tomé e Príncipe. Já em 1805, com 390 escravos a bordo, saiu de Whydah — hoje, Benim. No ano seguinte, a viagem partiu de Badagry, na costa da Nigéria. O barco retornou a Costa da Mina em 1808, 1810 e 1812, antes de interromper os trabalhos para o Brasil por um período de dez anos. Em 1822, 1825 e 1826 o barco negreiro foi comprar seres humanos em Cabinda, onde hoje se dá uma intensa luta separatista de Angola, ao norte deste país africano.
4. Caridade
Quatro diferentes embarcações sob esse nome
(1799 a 1836)
Bandeiras: Portugal e espanhola
Tipo de embarcação: bergatim, escuna, sumaca e galeota
Travessias realizadas: 20
Escravos transportados: 6.263
Escravos mortos durante a viagem: 392
Escravos desembarcados no Brasil: 5.871
Tempo de travessia África/América (média): 50 dias
Pelo menos quatro embarcações transportaram escravos sob o irônico nome de Caridade.
Somadas, elas carregaram o incrível número de 6.263 pessoas e, claro,
não fizeram caridade para nenhuma delas. Ao contrário: 392 pessoas
morreram nesses barcos. Na primeira década dos serviços de mortes e
sequestros, o barco tinha destino o Rio de Janeiro, ora recolhendo
africanos em Benguela, ora em São Tomé.
Em 1815, uma galeota chamada Caridade despejou
em Pernambuco apenas 301 dos 345 negros que embarcaram no barco. De
1819 a 1836, foi uma escuna que exibiu vergonhosamente o nome de Caridade pelos ventos do Atlântico, deixando a região do Benin em direção a Bahia, rota muito frequente ao longo dos séculos.
A única embarcação Caridade que
navegou com bandeira espanhola também mostrou toda a crueldade que o
nome “escondia”, em 1833. Deixando Bonny, no extremo sudeste de onde
hoje é a Nigéria, o barco foi capturado pelos britânicos no trajeto ao
Brasil.
5. Feliz Destino
(1818 a 1821)
Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 3
Escravos transportados: 1.139
Escravos mortos durante a viagem: 104
Escravos desembarcados no Brasil: 1.035
Todas as viagens com destino ao nordeste brasileiro
No estudo da slavevoyage, não há exatidão
do porto de destino de todos os barcos que vinham ao Brasil. Muitos
recebem registro apenas de uma grande região, mas não seus portos
específicos. É o caso de mais um bergatim de nome canalha, o Feliz Destino.
Todas as três viagens do barco, recheada de crimes contra a humanidade,
estão registradas para desembarcar em Pernambuco, mas isso pode
significar outros portos do nordeste brasileiro, como Maceió, Paraíba,
sem contar os próprios portos pernambucanos de Recife, Porto de Galinhas
e Maria Farinha (a 20km do Recife).
Por suas belezas, bem que o viajante que chegava a essas terras poderia considerar o destino um feliz destino. Não os escravos, é claro. Esses iriam trabalhar sob regime de prisão e tortura, em especial, nos engenhos de açúcar.
O comércio de seres humanos para Pernambuco
não foi tão largamente documentado como para Rio de Janeiro e Salvador,
mas, o estudo da Universidade de Emory, coloca o porto do Recife como o
quinto mais movimentado de todo o mundo no quesito desembarque de
escravos.
Como ocorreu com o Feliz Destino,
87,2% dos casos das viagens com destino a Pernambuco também tiveram
Pernambuco com o porto de origem da viagem, segundo o estudo
Financiamento e Organização do Tráfico de Escravos para Pernambuco no
Século XIX (Albuquerque, Versiani e Vergolino). Isso indica que os
líderes do comércio de seres humanos na região já eram residentes do
nordeste brasileiros — na maioria, portugueses.
De todas as viagens do bergatim Feliz Destino, a mais mortal foi a de 1821, conduzida pelo capitão Prudêncio Vital de Lemos.
6. Feliz Dias a Pobrezinhos
(1812)
Bandeiras: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: bergatim
Travessia realizada: 1
Duração da viagem: 94 dias
Escravos transportados: 355
Escravos mortos durante a viagem: 120
Escravos desembarcados no Brasil: 235
Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 33,8%
Se houvesse um carinho especial pela
história dos africanos no Brasil, certamente, estudaríamos na escola a
desgraçada saga do bergatim Feliz Dias a Pobrezinhos, que, além de matar 120 pessoas em sua única viagem, carregou consigo esse nome asqueroso.
Em 17 de dezembro de 1811, o barco deixou a
África com 355 negros escravizados. Ao contrário da maioria dos seres
humanos enviados para o Rio de Janeiro, o Feliz Dias a Pobrezinhos havia
carregado seu porão com mercadoria viva na costa africana voltada para o
Oceano Índico — e não no Atlântico. Do porto de Moçambique, saíram
escravos colhidos no interior do sul da África, como Zambêzia.
Alguns desses escravos partiam para o
Brasil já eram escravos de uma primeira migração forçada, já que os
portugueses importavam para Moçambique africanos de ilhas como
Madagascar, Ilhas Seychelles e do arquipélago de Comores, todos no
Oceano Índico, para depois revendê-los ao Brasil. Não há como ter
certeza de onde saíram os pobrezinhos que, em vez de felizes dias,
tiveram 94 dias de terror no mar.
É bem possível que muitos outros dos 235
que resistiram a tanta tortura não sobreviveram nem mesmo os primeiros
dias de Brasil. Não sabemos, por enquanto. Se houvesse um carinho
especial pela história dos africanos no Brasil, talvez já soubéssemos.
7. Graciosa Vingativa
(1840 a 1845)
Bandeiras: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: Iate a vela
Travessias realizadas: 10
Tempo da travessia (média): 30 dias
Escravos transportados:1.257
Escravos mortos durante a viagem: 125
Escravos desembarcados no Brasil: 1.132
Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 10%
Já não era uma tarefa simples traficar
escravos no período do segundo império brasileiro. Após o fim da
escravidão no Haiti (1791), a proibição do comércio para os Estados
Unidos (1808) e a abolição da escravidão nos territórios britânicos
(1833), o cerco para terminar com a horrorosa prática escravista também
se fechava no Brasil.
Embora o texto da Lei Feijó vetasse o
desembarque de escravos do Brasil a partir 1831, a lei não teve
eficácia, não pegou. Assim, na década de 1840, quando a Graciosa Vingativa, sem
nenhuma graça, espalhava morte e tortura no Atlântico, a região mais
perigosa da viagem não era a costa brasileira e, sim, a africana.
Era necessário, então, apostar em
embarcações mais ligeiras, capazes de fugir de barcos estrangeiros. Não
que a intenção de todas as forças estrangeiros fosse humanitária. Muitas
vezes, a perseguição a navios negreiros se dava por disputa econômica
mesmo.
O certo é que o iate a vela que levava o canalha nome de Graciosa Vingativa era
muito veloz. Tanto que, em 1844, conseguiu fazer três viagens de ida e
volta ao Brasil-Nigéria. Em janeiro, deixou Salvador e chegou a Lagos.
Voltou a Salvador com 111 escravos subjulgados na região do Benim. Em
março, o barco deixou novamente a Bahia e foi até Lagos, voltou em junho
com mais 144 negros cativos. Repetiu o percurso em setembro, com mais
133 presos a bordo. Ao total, seis pernas de cerca de 30 dias cada. Um
horror!
Conta o historiador Dale Graden que os
carpinteiros baianos tornaram-se conhecidos por sua habilidade em
reparar navios de madeira e “prepará-los/ adaptá-los” para viagens
escravagistas, numa forma de escapar da vigilância estrangeira. Aliás,
também vale lembrar que não havia navios construídos especialmente para
acomodar tantas pessoas na travessia. As embarcações eram, na verdade,
barcos mercantes.
A Graciosa Vingativa, ao total, foi responsável pelo transporte de 1.257 escravos africanos. 125, 10% deles, não resistiram e morreram no caminho.
8. Regeneradora
Três embarcações sob esse nome (1823 a 1825)
Bandeiras: Portugal/BrasilDas sete viagens, quatro estão registradas sob comando de Bento José Francisco Fortes, o que pode indicar que ele trocava de barco, mas mantinha seu registro de nome mentiroso. Pesquisas a história de Bento José indicam que ele era também um comerciante de farinha, feijão e fumo para o sul do país. Em três anos, foram oito pernas Atlânticas para o capitão, que, só sob seu comando, foi responsável por arrancar 1.036 pessoas de sua terra natal para servir a outros na América. Um canalha!
Tipo de embarcação: escuna, brigue e corveta
Travessias realizadas: 7
Tempo da travessia (média): 30 dias
Escravos transportados: 1.959
Escravos mortos durante a viagem: 159
Escravos desembarcados no Brasil: 1.800
Nas primeiras duas viagens das Regeneradoras, o roteiro era de ida e volta: Pernambuco — Luanda — Pernambuco. A partir da terceira viagem, a segunda do capitão Bento José, o tour aumentou: Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, despejando seres humanos ao longo da costa do Brasil recém independente, como os chineses fazem com seus brinquedinhos, hoje, na Nova República."
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