"Protagonistas
do filme, esses 'mensageiros' sobreviventes relatam, em estarrecedores
depoimentos, o desaparecimento de amigos e parente no mar mediterrâneo
Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior
Há um ano, um dos primeiros a se referir ao
Mediterrâneo como um “imenso cemitério marítimo” dos nossos tempos foi o
papa Francisco. Agora, desde o último domingo, em uma única madrugada
morreram cerca de 700 imigrantes africanos afogados nesse mar histórico
que segrega as lindas e desoladas praias da sua costa sul, às vezes
juncadas de cadáveres dos náufragos, das outras, as turísticas, nas
bordas do norte europeu opulento.
.
.
Foi no período entre o naufrágio no qual morreram 400 pessoas, dia 12
deste mês, no Mediterrâneo, e o segundo, mais pavoroso ainda, uma semana
depois, que estreou em Paris, em alguns cinemas-estúdios do Quartier
Latin, o impressionante filme documentário independente Les Messagers
(Os mensageiros), da videomaker Helène Crouzillat, autora de outros docs
políticos e da fotógrafa Laetitia Tura, estudiosa de questões
relacionadas às fronteiras entre países."
Protagonistas do filme, esses ‘mensageiros’
sobreviventes relatam, em estarrecedores depoimentos, o desaparecimento
de amigos no mar, dos parentes, das suas famílias inteiras, bebês,
crianças, idosos, desaparecidos no Mediterrâneo. Seus cadáveres
insepultos vão ter nas praias. “Contabilizamos 250 deles em apenas uma
única vez”, conta um pescador marroquino. São imigrantes que morrem
algumas vezes diante da indiferença das tripulações dos navios das
polícias costeiras da Espanha e do Marrocos ou atingidos pelas balas de
borracha e por gás lacrimogêneo lançados pela Guarda Civil espanhola
enquanto nadam tentando atingir a costa de Ceuta, enclave espanhol na
África.
É
um filme violento em que não existe ação. Longos silêncios, imagens
fixas do deserto e das águas do Mediterrâneo, trilha sonora praticamente
ausente: apenas o ruído doce e triste das ondas batendo na praia, do
murmúrio do vento do deserto, sons submarinos e o ranger das cercas, nas
fronteiras. Os comentários musicais aí se inserem, respeitosamente. Mas
há a memória e a palavra demolidora dos sobreviventes. Um sobrevivente,
por exemplo, pergunta, em seu testemunho: “Por que tudo isto? Nós
existimos; nós estamos aqui!”
Uma migração em massa dramaticamente engrossada
pelos que estão fugindo da guerra na Síria e do caos fabricado pelo
ocidente na Líbia.
Os
mensageiros anunciam a desumanização do mundo, hoje. Como dizem as
autoras do filme, eles mostram com clareza e são símbolos da cruel
divisão apresentada por Ray Bradbury e por Truffaut, por exemplo, em
Fahrenheit 451, e por diversos outros livros e filmes de ficção
científica, profetas do que viria a acontecer. Esses mensageiros
anunciam que um futuro sombrio pode ter chegado.
“Há
os que vivem dentro e os que se encontram fora. Os que podem acolher e
os que devem ser acolhidos; os que se sentem protegidos e os que são
maltratados pela História,” relembram Crouzillat e Tura.
Já os depoimentos de policiais de fronteira, de
um coveiro e do velho padre que consegue sepultar alguns corpos dos
afogados em túmulos sem nomes, e os testemunhos recolhidos de pescadores
(“Por vezes há tantos corpos deixados pelas ondas na areia que acabam
sendo enterrados em camadas, em covas rasas.”) esses são mostrados nas
suas molduras profissionais: nas praias, num pequeno cemitério e em um
escritório da fronteira de Melilla eletrificada e equipada com a
tecnologia mais moderna e letal.
A
declaração do comandante desse grupo de fronteira é relevante quando
ele observa: “Muitos policiais acabam precisando de tratamento
psiquiátrico depois de algum tempo servindo aqui, nesta fronteira”.
Por
outro lado, a realidade está aí, mostrando que o desânimo e a
resignação abatem-se sobre numerosos voluntários italianos que prestam
primeiros socorros aos náufragos, no Canal da Sicília, diante da
magnitude das cenas trágicas que presenciam. “Não suportamos mais ver
esses cadáveres,” afirma um deles se referindo aos que se dirigiam à
Itália. ”Temos um sentimento terrível de impotência.”
Agora, como ocorreu no último verão, grandes
barcos turísticos refazem as suas rotas para não cruzarem com os outros,
precários, dos imigrantes e assim evitarem a desagradável obrigação de
salvá-los. Mas a voz de um sobrevivente ressoa na bigorna da consciência
de quem vir este filme: “Somos os mensageiros de uma época. E nós
existimos; estamos aqui!”
Eles denunciam.
Porém,
para Helène Crouzillat, a questão que envolve a tragédia do
Mediterrâneo é ainda mais profunda - se isto é possível. “Nosso filme
mostra a vida nua,” ela comenta, referindo-se à ideia do filósofo
italiano Giorgio Agamben aplicada aos imigrantes africanos e orientais.
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