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história do americano Edward Snowden é contada nesse documentário com um
rigor profissional ímpar, simples, limpo e sem qualquer artifício
fácil.
Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior
No fim de 2012 a cineasta e escritora americana
independente Laura Poitras, de 51 anos, conhecida como autora de dois
elogiados documentários – My country, my country, filmado no Iraque, e
The Oath, sobre Guantánamo – recebeu um email criptografado de certo
Citizenfour que se prontificava a revelar a ela detalhes impressionantes
sobre os abusos do sistema de vigilância da National Security Agency, a
NSA, que invadia para bisbilhotar a vida privada de milhões de cidadãos
comuns ao redor do mundo. E, como ficou provado depois, espionava
também empresas e líderes de governos - caso de Angela Merkel e da
presidente Dilma Rousseff.
Cercando-se
de cuidados ao responder àquele ‘lançador de alerta’*, como são
conhecidos esses milhares de dissidentes do Sistema, que proliferam
rapidamente através do planeta trabalhando no mundo digital, nas sombras
e no anonimato, Poitras viu logo que se tratava de alguém de dentro e
não de fora da NSA, visto a qualidade e o grave teor dos primeiros
documentos que lhe foram enviados.
Seus
cuidados não eram paranóicos. Desde o seu primeiro filme, em 2006,
Poitras costumava ser importunada quando embarcava em viagens; nos
aeroportos, as bagagens eram revistadas e o passaporte questionado. Seu
nome consta – ou constava? - das primeiras listas de segurança dos EUA
nas quais se encontram os nomes de indivíduos considerados perigosos.
Ela era - como é ainda - uma pessoa vigiada que corria riscos porque
estava em contato com lançadores de alerta famosos e alguns deles
processados: William Binney, ex-funcionário da NSA; Julian Assange,
fundador do Wikileaks, Jacob Appelbaum, hacker e ativista, entre vários
outros. Na ocasião, Poitras pesquisava para um novo filme justamente
sobre espionagem de estado e vazamentos.
Até
junho de 2013 a cineasta trocou dezenas de mensagens com citizenfour
até decidir aceitar o seu convite para conhecê-lo e encontrá-lo no
conhecido hotel Mira, de Hong Kong. O tal cidadão quatro desejava que
ela, com a sua câmera, e o jornalista Glenn Greenwald, do The Guardian, o
ouvissem e fossem depositários de suas perigosas revelações para que
fosse possível levá-las adiante caso alguma violência se abatesse sobre
ele quando os vazamentos se tornassem públicos.
Ela
conta em uma das diversas entrevistas que concedeu quando o seu
filme-bomba foi lançado no Festival de Nova Iorque de 2014: “Edward me
enviara documentos nos quais constava seu nome verdadeiro; mas eu decidi
não digitá-lo para não chamar atenção sobre ele.”.
Foi
assim que 16 meses depois de revelar ao mundo o programa de vigilância
global administrado pelo governo dos EUA, a história do americano Edward
Snowden, de 31 anos, é contada nesse documentário, de um rigor
profissional ímpar, simples, limpo e sem qualquer artifício fácil. Com
narrativa segura e passando ao espectador uma tensão muito mais aguda
que a da maioria dos blockbusters de ficção que circulam por aí, filmes
dejá vu, de suspense barato estrelados por astros decadentes.
A
revista (comercial) Variety definiu Citizenfour, Oscar de melhor
documentário deste ano, como “um retrato extraordinário” de Snowden. Na
outra ponta, o site de esquerda Salon.com o descreveu como “uma história
de espionagem real, urgente e cativante que deveria ser vista por todos
os norte-americanos”.
São
114 minutos dos quais 60 filmados no pequeno quarto de Snowden no hotel
Mira, e ele revelando e entregando documentos a Greenwald sobre como os
EUA e outras potências violam princípios fundamentais da democracia e
do direito sacudindo relações diplomáticas aparentemente sólidas e,
sobretudo, mudando o modo como os cidadãos avaliam seus governos. Laura
admite que naqueles oito dias de filmagens no Mira sentiu mais medo do
que quando estivera trabalhando nas zonas de conflito de Bagdá, tal a
dimensão da repercussão planetária, que, ela sabia, é claro, ia se
desencadear logo após as denúncias fossem publicadas.
E
nenhum dos três, Snowden, Greenwald e ela não tinham certeza se já
tinham sido ou não localizados pela inteligência americana em Hong Kong.
“No
início, Snowden desejava o anonimato. Não queria que a história fosse
também sobre ele. Desejava que o público entendesse o que o governo
fazia. Mas de qualquer modo, eu argumentei, o mundo vai querer saber
quem é você e quais foram suas motivações,” observa Poitras, que seguiu
os cânones do mais puro cinema verdade: não interferir em momento algum
no que a câmera registra.
No
filme, Snowden oferece duas chaves para suas motivações. Uma, quando
diz: “Espero que as pessoas não vejam isto como uma história de
heroísmo. Na realidade, é uma história sobre o que pessoas comuns podem
fazer em circunstâncias extraordinárias.”
Sua outra reflexão: “ Para haver liberdade de expressão é preciso que ela seja protegida.”
O
detalhe inacreditável, que beira o nonsense, se dá quando o trabalho
está terminado e a estratégia imediata é costurada. O The Guardian, com
Greenwald e Ewen MacAskill - outro repórter do The Guardian presente ao
encontro - soltaria imediatamente, on line, a matéria explosiva. Laura
pegaria um voo para sair de Hong Kong e Edward desceria para o lobby do
hotel e se dirigiria para o escritório da ONU na cidade onde advogados
especializados em direitos humanos o aguardavam; era um espaço em que
ele estaria em segurança – pelo menos teórica.
Snowden
descerá pelo elevador calmamente, irá até a entrada do Mira e...
entrará num táxi, sozinho, para ir ao encontro, afinal, de quê? Do seu
destino? Da sua opção?
Foi
o último instante talvez em que pôde circular anônimo, no meio da
multidão, antes que hordas de equipes de mídia do mundo inteiro
invadissem o lobby do hotel.
Durante
as conversas registradas no filme, a mais importante (e mais
intrigante), com Snowden já instalado em Moscou, é interrompida pelo
método de segurança adotado por Greenwald. Para evitar a captação da
notícia por equipamentos de áudio porventura escondidos na sala, Glenn
escreve um bilhete a Edward, sentado na sua frente, com o nome de um
novo informante, uma outra fonte da NSA. Ao ler o papel e saber que esse
indivíduo ainda está na ativa dentro da agência, Snowden fica de queixo
caído. Codinome: a câmera de Laura o mostra, rabiscado num papel.
A
CNN, em agosto de 2014, especulara que haveria uma ‘segunda fonte’
vazando documentos. Notícia fornecida por funcionários do governo. Essa
informação continha o documento com o registro do número de pessoas na
lista do governo dos EUA sob vigilância porque consideradas ameaça
potencial ou suspeitas: 1,2 milhões.
No
dia do lançamento de Citizenfour, em Nova Iorque, Glenn escreveu que o
documentário, no final, apresenta um Snowden bem, morando com a namorada
Lindsay Mills, de Baltimore, há um ano em Moscou. Um ambiente que os
autores quiseram realçar. As imagens domésticas do casal são filmadas
com uma câmera discreta, distante e respeitosa. O jornalista considera
importante esse registro porque mostra para muitos outros potenciais
lançadores de alerta que é possível desafiar um governo imperial e mesmo
assim construir uma vida feliz.
Pelo menos uma vida com a consciência em paz.
Vale
lembrar que, com o objetivo de incentivar novos vazamentos – sem
interesses pessoais ao contrário dos vazamentos seletivos e inaceitáveis
aqui, no Brasil, como em qualquer país do mundo com democracia madura e
bem estruturada –, com esse objetivo Greenwald apoiou, recentemente, o
projeto Courage Foundation liderado por Sarah Harrison, do WikiLeaks,
dedicado a ajudar na proteção de jornalistas e informantes que colocam a
vida e a liberdade em risco para revelar informações de interesse
público sobre governos e empresas.
A
expectativa é a de que, com a exibição desse fascinante doc sobre a
história do (quase ainda) garoto tímido, que gosta de brincar com cubo
mágico - como mostra o filme -, proliferem centenas de milhares de
outros lançadores de alerta. Eles são fundamentais como contraponto às
mentiras dos governos e à ficção oficial.
O filme pode ser visto em https://thoughtmaybe.com/citizenfour/
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