Rafael Teodoro, Revista Bula
“Em
matéria de vulgaridade na música pop, o Brasil está pelo menos duas décadas à
frente dos Estados Unidos. Carla Perez, dona do rebolado mais famoso,
tornou-se, assim, símbolo de um dos piores momentos na história da indústria
fonográfica brasileira. E o que a tornava tão especial? Simples: a bunda
Em 1996, o grupo É o Tchan lançou “A Dança
do Bumbum” como single do — hoje felizmente esquecido — álbum “Na Cabeça e na
Cintura”. Como o próprio nome indica, a faixa enaltecia, numa letra escrita por
um semianalfabeto, as nádegas do corpo feminino, que assumiam papel de destaque
nas coreografias encenadas por voluptuosas dançarinas. Versos como “vai
descendo gostoso, balançando a bundinha” davam o tom da axé music, um fenômeno
local da Bahia, mas que rapidamente foi abraçado pela indústria fonográfica
brasileira. Os produtores perceberam que tinham em mãos um produto de péssima
qualidade artística, porém altamente rentável: investir na sensualização vulgar
do corpo da mulher era certeza de lucro. De um lado, agradava-se o público
feminino, estimulado a imitar as coreografias enquanto corriam atrás de um trio
elétrico nas micaretas. Viam-se garotas malharem nas academias para depois se
cobrirem, da cabeça aos pés, com um minúsculo abadá multicolorido, que as
transformava instantaneamente numa espécie de outdoor ambulante, tamanha a
quantidade de marcas de patrocinadores estampada na roupa. De outro,
satisfazia-se também o público masculino, formado em boa parte por praieiros
estultos da classe média, interessados nos closes ginecológicos das dançarinas
e nas capas da “Playboy” que elas estampavam, formando um exército involuntário
de quirômanos “axezeiros”.
Foi nessa “idade das trevas” da música pop
brasileira, liderada pelo sucesso estrondoso do grupo É o Tchan, que “bunda” e
“rebolado” tornaram-se duas palavras repetidas à exaustão nos hits
radiofônicos. Nunca o analfabetismo foi tão prestigiado como pré-requisito no
currículo de um compositor. Era meado da década de 1990 e o Brasil conhecia,
pela primeira vez na história, uma “banda” cujo principal destaque não era
nenhum dos músicos ou dos cantores, mas sim as dançarinas em performances
rebolantes. Carla Perez, dona do rebolado mais famoso, tornou-se, assim,
símbolo de um dos piores momentos na história da indústria fonográfica brasileira.
E o que a tornava tão especial? Simples: a bunda. Isto mesmo: ela não tocava
nenhum instrumento, tampouco cantava; tudo o que fazia era rebolar a bunda como
ninguém. E assim era forjado um ídolo pop na “idade das trevas” da axé music.
Patrimônio nacional
Para o brasileiro que vivenciou a passagem
desse contexto, chega a ser incompreensível o porquê de o “twerk” de Miley
Cyrus ter causado tanto furor nos Estados Unidos. Para quem não sabe, “twerk” é
a expressão em inglês que designa a dança em que a mulher balança suas nádegas
para sensualizar seu corpo, numa tentativa de excitar o parceiro com o rebolado
dos quadris. Resumidamente, trata-se da “dança do bumbum” dos estadunidenses,
que, com pelo menos duas décadas de atraso em relação ao Brasil, começam a
experimentar o gostinho da vulgarização exacerbada do corpo da mulher, tornada
um objeto de desejo e de consumo, por uma indústria fonográfica oportunista e
cada vez menos interessada… na música!
No entanto, o escândalo que o “twerk” de
Miley Cyrus provocou nos Estados Unidos talvez possa ser explicado por outros
fatores. O principal deles relaciona-se ao fato de que a dançarina é uma
cantora que se tornou famosa ainda na infância, quando estrelou o seriado
“Hannah Montana” da Disney. Sua carreira, portanto, foi construída em cima de
uma base de fãs formada por crianças e adolescentes, os quais cresceram com seu
ídolo infantil. Daí veio o impacto: uma garota de 21 anos, que até bem pouco
tempo cantava o amor romântico, de repente surge no “Video Music Awards” da MTV
em microroupas bege coladíssimas, a encenar uma coreografia constrangedora,
pela qual simula a prática de sexo anal com seu parceiro de cena, o cantor
Robin Thicke. A música (“Blurred Lines”) era o que menos importava. Quem viu a
apresentação só conseguia lembrar-se de uma coisa: o “twerk” — a dança vulgar e
de mau gosto. Efeito igualzinho àquele proporcionado pelas dançarinas da axé
music nos idos da década de 1990.
A diferença é que, em matéria de vulgaridade na música
pop, o Brasil está pelo menos duas décadas à frente dos Estados Unidos. A dança
do bumbum é patrimônio nacional!
Carla
Perez americana
É evidente que a dança de Cyrus foi
meticulosamente pensada pelo produtor que dirige sua carreira. Quando a cantora
estadunidense subiu no palco do VMA, ela sabia exatamente o que ia fazer. O
objetivo, com seu “twerking”, era chocar a plateia. E, a julgar pelas reações
exaltadas que se viu na imprensa dos EUA, ela conseguiu. Mas falhou
miseravelmente no seu propósito autopromocional: Miley Cyrus quis ser vista
como uma cantora cheia de sensualidade, espécie de Madonna sem rugas do século
21. No fundo, abusou do sex appeal para compensar o que lhe falta em talento
musical. O máximo que conseguiu foi se tornar a Carla Perez americana — em uma
versão esquelética e com um par de glúteos bem menos generosos.
Recentemente, a provar que o escândalo do
“twerk” no VMA foi um movimento de marketing calculado de forma meticulosa,
Miley Cyrus voltou a ocupar as manchetes do mundo inteiro com o lançamento do
videoclipe de “Wrecking Ball”, single do seu novo álbum “Bangerz” (2013). Mais
uma vez, o que menos importou na carreira da moça foi a música: nas resenhas
dos jornalistas, nos programas de televisão, nas revistas de fofoca, nem uma
palavra sobre a música, sobre seu desempenho como cantora. Só se falou da nudez
quase explícita da jovem que, calçando tão somente um par de botas, rodopia
numa bola de ferro de demolição, enquanto alterna cenas em que aparece de
calcinha na posse dum martelo, lambendo-o lascivamente, como se fosse um
instrumento fálico. O desempenho é tão apelativo que chega a ser digno da
classificação de filme pornô softcore.
O videoclipe de “Wrecking Ball” assinala,
definitivamente, a tentativa de Miley Cyrus de distanciar-se da personagem
Hannah Montana que fazia sucesso com hits, até certo ponto ingênuos, como “The
Climb”. Agora, a menina doce do Disney Channel, que fazia a festa das crianças
em todo o mundo, ficou para trás. A Miley Cyrus que gravou “Bangerz” virou
adulta precocemente e escolheu o “twerk” em detrimento da voz. Decerto uma
aposta perigosa, ainda mais para alguém tão jovem. Resta saber quanto tempo ela
durará num mercado tão competitivo como o da música pop, já saturado pela vovó
Madonna e seus “toyboys”, pelos escândalos pré-fabricados de Lady Gaga e pelo
show erótico-apologético dos glúteos da chacrete Beyoncé — dona de um rebolado
bem mais convincente no palco, embora com um repertório tão ruim quanto o de
uma Ivete Sangalo. De consolo, ainda resta para Miley Cyrus o lugar de “rainha
da dança do bumbum” no Brasil, título sem dona desde que Carla Perez
aposentou-se do mundo das subcelebridades sem talento e acorreu aos “braços de
Deus”, buscando a expiação da sua extensa lista de pecados (aí incluídos o
assassinato permanente da língua portuguesa nas raras vezes em que abriu a boca
para falar, além de ter sido cúmplice na tortura dos ouvidos humanos realizada
pelo É o Tchan). Mas não sei sinceramente se o “twerk” é páreo para a “dança do
bumbum” brasileira. Afinal, em matéria de rebolado vulgar embalado por música
desprezível, a axé music está pelo menos duas décadas à frente dos Estados Unidos.
Miley Cyrus poderia doutorar-se nessa “arte” por aqui.”
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