"O Quixote do poste de iluminação", de Alberto Korda |
Francisco Quinteiro Pires, CartaCapital
Quinze minutos após iniciar um passeio pela Urbes Mutantes: Latin American Photography 1944-2013,
o curador Alexis Fabry parou diante de duas fotografias de Miguel Rio
Branco. Ele queria que os visitantes prestassem atenção ao conteúdo
chocante das imagens do brasileiro. Colocadas lado a lado e com o título
Mad Dog, Maciel (1980), elas exibem dois seres
sujos e deitados no chão. “Esse díptico”, escreve o crítico David Levi
Strauss, “relaciona um homem morto ou dormindo num pavimento com um
cachorro, ambos na mesma posição e condição, a formar uma equação
abjeta”. De acordo com Fabry, a representação fotográfica que equipara
um ser humano a um animal revela a rua como um espaço onde a miséria não
se disfarça.
Urbes Mutantes, em cartaz até
setembro no International Center of Photography (ICP) de Nova York,
mostra as transformações e os problemas das cidades latino-americanas em
cerca de 200 imagens tiradas por fotógrafos de rua, artistas e
fotojornalistas. Para Fabry e María Wills, responsáveis pela montagem a
partir da coleção particular de Leticia e Stanislas Poniatowski, “cada
imagem tem uma ideo-
logia” e, quando adicionada ao conjunto, é capaz de exibir a diversidade urbana do continente americano. As imagens selecionadas mostrariam as diferenças entre oito países da América Latina, apesar do passado colonial comum e da desigualdade econômica onipresente.
logia” e, quando adicionada ao conjunto, é capaz de exibir a diversidade urbana do continente americano. As imagens selecionadas mostrariam as diferenças entre oito países da América Latina, apesar do passado colonial comum e da desigualdade econômica onipresente.
Os espaços urbanos de Argentina, Brasil,
Chile, Colômbia, Cuba, México, Peru e Venezuela foram, entre os anos
1940 e 2000, uma plataforma para protestos sociais contra governos
autoritários, um palco para a cultura popular e a face pública da
pobreza. As fotos preservam a memória fugidia desses lugares fadados à
reconstrução inacabada ou à ruína cíclica, em contraste com “o moderno
espírito público direcionado à criação de cidades como símbolos do
progresso e do triunfo do capitalismo”, segundo Fabry e Wills.
O ensaísta uruguaio Ángel Rama
(1926-1983) entendeu a urbanização latino-americana como um projeto de
dominação justificado por ideologias que uma minoria de intelectuais
formulou nos últimos cinco séculos. “Desde a remodelação de Tenochtitlán
após a sua destruição por Hernán Cortés em 1521 até a inauguração em
1960 do sonho de urbe de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a cidade
latino-americana tem sido um parto da inteligência”, escreveu Rama no
livro La Ciudad Letrada (1984). “Ela esteve inscrita num ideal da
cultura universal como a representante de uma ordem social e encontrou
no novo continente o único lugar propício para se tornar realidade.”
Rama relata em La Ciudad Letrada
que o plano oficial era substituir “as cidades orgânicas” da Península
Ibérica medieval pelas “cidades organizadas” no Novo Mundo, onde a razão
pautaria a distribuição do espaço e um estilo de vida. Uma paisagem
urbana repetitiva e planificada demandaria de seus habitantes o
cumprimento desse desejo de ordem. O projeto de colonização, sugere
Rama, desrespeitou singularidades. A abstração, a racionalização e a
sistematização defendidas pelas Coroas espanhola e portuguesa se oporiam
à expressão criativa das culturas locais. Essa sociedade hierarquizada
promoveu uma realidade à parte nas Américas. Desse esforço do Estado
resultou a exclusão em termos de classe e de raça.
Fabry e Wills dedicaram The Forgotten Ones, uma das nove seções de Urbes Mutantes, aos excluídos das cidades latino-americanas. Fotógrafos como Héctor García (mexicano), Adriana Lestido (argentina), Sergio Larraín (chileno), Roberto Fontana (venezuelano) e Miguel Rio Branco representam o engajamento social iniciado por William Henry Fox Talbot (1800-1877), autor de retratos de trabalhadores e marginalizados. “A qualidade transparente do recurso fotográfico, desenvolvido no século XIX como uma ferramenta para a documentação objetiva, desafiou a hipótese de que a representação deveria estar vinculada a ideais clássicos de beleza materializados nas vidas das classes mais ricas”, dizem os curadores.
Os fotógrafos selecionados registraram os
esquecidos. Essa atitude gerou discussões sobre a espetacularização da
miséria, lembra Wills. “Na América Latina, vários colóquios abordaram
essa questão e um dos pontos de vista mais fortes percebeu os fotógrafos
que não eram ativistas ou participantes de movimentos sociais como
exploradores dos oprimidos”, diz a curadora a CartaCapital.
Urbes Mutantes ignora os mais
abastados. Os visitantes da exposição do ICP aprendem pouco sobre os
hábitos e as fisionomias das elites latino-americanas. A mexicana Yvonne
Venegas representa uma das exceções. Entre 2004 e 2010, Venegas
acompanhou o dia a dia de María Elvira de Hank, filantropa e esposa do
milionário Jorge Hank Rhon, para entender como os ricos aproveitam seus
privilégios. “Por que não há mais imagens reveladoras das elites? Os
fotógrafos dos anos 1960 e 1970, décadas às quais pertence a maioria das
imagens, não estavam interessados em retratar os mais ricos. Por vezes,
eles nutriam repulsa a essa possibilidade”, Wills explica. “As elites
aparecem em Urbes Mutantes de maneira indireta quando Pedro Meyer
(mexicano) fotografa as sobras de uma refeição feita por políticos num
restaurante ou Pablo López Luz (mexicano) retrata as fachadas das casas
dos bairros mais ricos. Incluímos uma visão mais representativa das
raças e classes sociais nas Américas. Evitamos antagonizá-las.”
A primeira seção de Urbes Mutantes chama-se Living Walls (Paredes Vivas).
“Aqui a câmera preserva momentos importantes da vida urbana, como
protestos contra desmandos políticos, projetos urbanos inacabados e
marcos arquitetônicos”, afirma Wills. Ao fotografar grafites, cartazes e
placas, Fernell Franco (colombiano), Yolanda Andrade (mexicana), Sameer
Makarius (argentino), María Cecilia Piazza (peruana) e outros
transformaram esses escritos públicos em metáforas dos sentimentos dos
moradores urbanos, como o cinismo, a frustração, a raiva e o humor. Rama
associou a comunicação verbal do povo nas paredes citadinas a um
desafio à autoridade das elites intelectuais como as únicas intérpretes
da realidade.
Urban Geometries (Geometrias Urbanas)
trata da organização espacial e estruturas físicas das cidades. Fabry e
Wills escolheram trabalhos que exploraram luzes, sombras e reflexos
para abordar de modo abstrato a expansão das metrópoles dos anos 1940 em
diante. Segundo a curadoria, as imagens de Paolo Gasparini (foto ao
lado) (venezuelano), Lázaro Blanco (mexicano), Armando Salas Portugal
(mexicano) e Rosario López (colombiana) comprovam o ecletismo
arquitetônico da América Latina, entre construções planejadas e
desordenadas. Urban Geometries concentra o maior número de
fotógrafos brasileiros: José Yalenti, German Lorca, Thomaz Farkas e
Geraldo de Barros, todos pertencentes ao Foto Cine Clube Bandeirante.
“Na América Latina, a urbanização deu-se
com muita rapidez, o que gerou as paisagens mais intrigantes. O Foto
Cine Clube Bandeirante é um dos primeiros no continente a oferecer uma
visão menos conservadora e mais autoral da fotografia”, diz Wills.
Criado em 1939, o fotoclube paulistano percebeu a imagem como uma obra
de expressão artística. “Urbes Mutantes não é uma exposição sobre
fotógrafos de rua latino-americanos. Ela trata antes de tudo do impacto
das diferentes culturas urbanas sobre o imaginário desses
profissionais.” Novos ângulos e formas surgiram para capturar cidades
cujas aparências mudavam, enquanto seus problemas essenciais se
perpetuavam."
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