Chris Kirk, técnico em informática que virou criminoso, em cena do filme A Vida Privada dos Hipopótamos |
Matheus Pichonelli, CartaCapital
Desde Cidadão Kane sabemos, pelo
cinema, que a vida de um homem, por mais notório ou notável, não cabe em
uma foto, um vídeo ou uma reportagem.
Indicado ao Oscar de melhor documentário em 2015, O Sal da Terra deixou uma multidão de espectadores tão boquiabertos quanto instigados: “Ok, sabemos o que fez o fotógrafo Sebastião Salgado, mas quem é este homem?”,
perguntamos, ao fim da obra dirigida por seu filho, Juliano Salgado, e Wim Wenders. Não sabemos. Jamais saberemos.
No filme A Vida Privada dos Hipopótamos, que estreou na semana passada, há muito mais do que a tentativa de entender um personagem real – um técnico em informática americano que se transforma em traficante na América do Sul. O documentário, dirigido por Maíra Bühler e Matias Mariani, é o ofício em seu divã.
Nesse ofício, mostram os diretores, o meio é não só a mensagem, mas também uma pista turva. Para se entender um personagem, é preciso saber como ele se comunica. O computador, e não mais as cartas ou diários íntimos, é seu código genético em busca de uma revelação. Na rede, e não na tinta, residem nossos diálogos, nossos medos, nossos gostos pessoais.
Uma vez aberto, o computador coloca à disposição de nossos biógrafos os segredos visíveis e invisíveis em um discurso (supostamente) consciente. O entrechoque entre o que se diz e o que se digita é o ponto entre o que pensamos dizer e o que supomos guardar. Sua decodificação é tão inglória quanto vã.
No filme, os diretores inovam ao colocar em primeiro plano não apenas o que se diz diante das câmaras, mas o que permanecia escondido nas pastas da memória de um computador, como vídeos, músicas e trocas de mensagem instantânea. Parte do documentário segue o rito que se espera de uma boa investigação: ouve as fontes e apresenta os lugares descritos. Amigos (não identificados), colegas e o próprio traficante, preso em uma penitenciária de São Paulo, têm a prerrogativa de contar uma história a partir de sua própria posição.
Chris Kirk, o protagonista, é um enganador, diz um amigo. É o Pinóquio: ingênuo e prestes a ser engolido por uma baleia (ou seria hipopótamo?), argumenta outro. Estava apenas em busca de aventura, afirmam outros.
Mas o que o traficante diz sobre ele mesmo? Aparentemente, nada. Por quase uma hora, a narrativa do personagem principal se orienta a partir dos desencontros com uma namorada conhecida em sua viagem para a Colômbia.
Dela desconhecemos o rosto e o nome. E isso não faz a menor diferença.
Em seu relato, Kirk diz ter decidido viajar até a América do Sul após descobrir, em uma pesquisa na internet, a história dos hipopótamos trazidos da África por Pablo Escobar, narcotraficante que, após sua morte, deixou como legado uma multidão de artiodátilos que se adaptaram, se multiplicaram e passaram a assombrar os fazendeiros do país.
Os hipopótamos são animais estranhos. Os gregos os chamavam de “cavalos do rio”. Sem pelos, vivem em águas turvas e na lama para manter a temperatura do corpo baixa e para não ressecar a sua pele. À noite, pastam e se alimentam de grama – só comem carne em períodos de estresse nutricional ou comportamento aberrante.
A verdade é que o hipopótamo, uma figura entre dócil e arisca – e portanto ambígua e indefinida –, assusta. É tudo o que não queremos encontrar quando mergulhamos no rio. E um rio, ensinava João Guimarães Rosa, é profundo como a alma de um homem. “Na superfície, são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros, como o sofrimento dos homens.”
O mergulho pela alma de um homem é o mergulho em uma água turva. No filme, as contradições e lorotas do personagem – que é um quando fala, outro quando se deixa gravar, outro quando baixa suas músicas favoritas no computador, outro quando se comunica em programas de mensagem instantânea e outro quando objeto de busca nos sites da Justiça – são não apenas tralhas em uma narrativa confusa, mas partes elementares e significantes de uma bricolagem. O resto é qualquer coisa, menos cinema.
Em um dos vídeos guardados no computador de Kirk, um apresentador de stand up comedy define as crianças como seres entediados que matam o tempo riscando o carro e passando cocô em maçanetas do estacionamento das lojas de departamento. Pudera: são sujeitos aprisionados à própria idade, obrigação, tarefas e proibições. Adultos, podemos concluir, são crianças igualmente entediadas, mas com uma diferença: podem beber, fumar, se drogar e fugir do tédio. É a chamada fuga do desprazer, um meio-termo entre o hedonismo e a adicção.
Kirk, dizem os amigos, é o técnico em informática entediado que não se adaptaria a uma vida frugal e familiar num subúrbio americano. Para estar vivo, precisava correr riscos – e correr riscos é afrontar a própria consciência.
Nada do que é claro e evidente o interessa. Se estivesse na frente de um psicanalista, e não de diretores de cinema, Kirk provavelmente seria analisado como sujeito e objeto do próprio desejo. Ele tem atração pela dubiedade dos hipopótamos como tem atração por uma namorada nipo-colombiana descrita entre menina e mulher, entre ingênua e sagaz, entre coerente e inverossímil.
“Se eu queria enlouquecer, esta é minha chance”, poderia dizer o personagem ao descrever sua atração pelas águas de rosto misterioso em que mergulhava. Se estivesse em busca de resposta, Kirk saberia que sua atração não residia nos hipopótamos de Pablo Escobar, mas no próprio Pablo Escobar.
O cinema, porém, não quer respostas – e só o mau cinema se rende fácil a histórias com começo, meio e fim. Em A Vida Privada dos Hipopótamos, os segredos mais íntimos e mal guardados de um personagem em conflito são acessados e reorganizados. O resultado não são as nascentes, mas as veredas que se bifurcam e multiplicam – e confundem quem ouve, quem grava e quem assiste. A busca pela linha reta das respostas é um tropeço inconstante em buracos, pedras e curvas acentuadas. Podemos até saber o que é Rosebud, mas jamais entenderemos quem é Kane além do cidadão. Pois tudo o que é humano é múltiplo. E inexplicável."
Indicado ao Oscar de melhor documentário em 2015, O Sal da Terra deixou uma multidão de espectadores tão boquiabertos quanto instigados: “Ok, sabemos o que fez o fotógrafo Sebastião Salgado, mas quem é este homem?”,
perguntamos, ao fim da obra dirigida por seu filho, Juliano Salgado, e Wim Wenders. Não sabemos. Jamais saberemos.
No filme A Vida Privada dos Hipopótamos, que estreou na semana passada, há muito mais do que a tentativa de entender um personagem real – um técnico em informática americano que se transforma em traficante na América do Sul. O documentário, dirigido por Maíra Bühler e Matias Mariani, é o ofício em seu divã.
Nesse ofício, mostram os diretores, o meio é não só a mensagem, mas também uma pista turva. Para se entender um personagem, é preciso saber como ele se comunica. O computador, e não mais as cartas ou diários íntimos, é seu código genético em busca de uma revelação. Na rede, e não na tinta, residem nossos diálogos, nossos medos, nossos gostos pessoais.
Uma vez aberto, o computador coloca à disposição de nossos biógrafos os segredos visíveis e invisíveis em um discurso (supostamente) consciente. O entrechoque entre o que se diz e o que se digita é o ponto entre o que pensamos dizer e o que supomos guardar. Sua decodificação é tão inglória quanto vã.
No filme, os diretores inovam ao colocar em primeiro plano não apenas o que se diz diante das câmaras, mas o que permanecia escondido nas pastas da memória de um computador, como vídeos, músicas e trocas de mensagem instantânea. Parte do documentário segue o rito que se espera de uma boa investigação: ouve as fontes e apresenta os lugares descritos. Amigos (não identificados), colegas e o próprio traficante, preso em uma penitenciária de São Paulo, têm a prerrogativa de contar uma história a partir de sua própria posição.
Chris Kirk, o protagonista, é um enganador, diz um amigo. É o Pinóquio: ingênuo e prestes a ser engolido por uma baleia (ou seria hipopótamo?), argumenta outro. Estava apenas em busca de aventura, afirmam outros.
Mas o que o traficante diz sobre ele mesmo? Aparentemente, nada. Por quase uma hora, a narrativa do personagem principal se orienta a partir dos desencontros com uma namorada conhecida em sua viagem para a Colômbia.
Dela desconhecemos o rosto e o nome. E isso não faz a menor diferença.
Em seu relato, Kirk diz ter decidido viajar até a América do Sul após descobrir, em uma pesquisa na internet, a história dos hipopótamos trazidos da África por Pablo Escobar, narcotraficante que, após sua morte, deixou como legado uma multidão de artiodátilos que se adaptaram, se multiplicaram e passaram a assombrar os fazendeiros do país.
Os hipopótamos são animais estranhos. Os gregos os chamavam de “cavalos do rio”. Sem pelos, vivem em águas turvas e na lama para manter a temperatura do corpo baixa e para não ressecar a sua pele. À noite, pastam e se alimentam de grama – só comem carne em períodos de estresse nutricional ou comportamento aberrante.
A verdade é que o hipopótamo, uma figura entre dócil e arisca – e portanto ambígua e indefinida –, assusta. É tudo o que não queremos encontrar quando mergulhamos no rio. E um rio, ensinava João Guimarães Rosa, é profundo como a alma de um homem. “Na superfície, são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros, como o sofrimento dos homens.”
O mergulho pela alma de um homem é o mergulho em uma água turva. No filme, as contradições e lorotas do personagem – que é um quando fala, outro quando se deixa gravar, outro quando baixa suas músicas favoritas no computador, outro quando se comunica em programas de mensagem instantânea e outro quando objeto de busca nos sites da Justiça – são não apenas tralhas em uma narrativa confusa, mas partes elementares e significantes de uma bricolagem. O resto é qualquer coisa, menos cinema.
Em um dos vídeos guardados no computador de Kirk, um apresentador de stand up comedy define as crianças como seres entediados que matam o tempo riscando o carro e passando cocô em maçanetas do estacionamento das lojas de departamento. Pudera: são sujeitos aprisionados à própria idade, obrigação, tarefas e proibições. Adultos, podemos concluir, são crianças igualmente entediadas, mas com uma diferença: podem beber, fumar, se drogar e fugir do tédio. É a chamada fuga do desprazer, um meio-termo entre o hedonismo e a adicção.
Kirk, dizem os amigos, é o técnico em informática entediado que não se adaptaria a uma vida frugal e familiar num subúrbio americano. Para estar vivo, precisava correr riscos – e correr riscos é afrontar a própria consciência.
Nada do que é claro e evidente o interessa. Se estivesse na frente de um psicanalista, e não de diretores de cinema, Kirk provavelmente seria analisado como sujeito e objeto do próprio desejo. Ele tem atração pela dubiedade dos hipopótamos como tem atração por uma namorada nipo-colombiana descrita entre menina e mulher, entre ingênua e sagaz, entre coerente e inverossímil.
“Se eu queria enlouquecer, esta é minha chance”, poderia dizer o personagem ao descrever sua atração pelas águas de rosto misterioso em que mergulhava. Se estivesse em busca de resposta, Kirk saberia que sua atração não residia nos hipopótamos de Pablo Escobar, mas no próprio Pablo Escobar.
O cinema, porém, não quer respostas – e só o mau cinema se rende fácil a histórias com começo, meio e fim. Em A Vida Privada dos Hipopótamos, os segredos mais íntimos e mal guardados de um personagem em conflito são acessados e reorganizados. O resultado não são as nascentes, mas as veredas que se bifurcam e multiplicam – e confundem quem ouve, quem grava e quem assiste. A busca pela linha reta das respostas é um tropeço inconstante em buracos, pedras e curvas acentuadas. Podemos até saber o que é Rosebud, mas jamais entenderemos quem é Kane além do cidadão. Pois tudo o que é humano é múltiplo. E inexplicável."
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