Menino Explodido, a galhofa em retângulo, Malásia Oriental, 1976 |
Rosane Pavam, CartaCapital
O fotógrafo Roger
Ballen nasceu entre artistas. O francês Henri-Cartier Bresson, chefe de
sua mãe na agência fotográfica Magnum, frequentou a casa da família em
Nova York. Quando Adrienne Ballen passou a galerista, nos anos 1970, o
húngaro André Kertész, que correra à América no pós-Guerra, contratou
seus serviços.
Os dois fotógrafos de grandes afinidades
transformaram-se na escola invisível do jovem nova-iorquino. Cultos e
contraditórios, eles haviam sido formados no surrealismo antes que
almejassem ao ofício de fotojornalistas. Isto equivalia a dizer que
acreditavam mais na poética em torno do fato do que no fato em si.
Quando ganhou sua primeira câmera, aos 13 anos, em
1963, Roger Ballen preparou-se para fazer da fotografia algo semelhante à
arte nova, geométrica e sensorial, desenvolvida pelos dois. Por meio da
máquina que via o mundo, enxergaria a si próprio.
Suas 113 imagens expostas no Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo até 27 de setembro
exemplificam essa procura por retratar um grande e desconhecido
interior, à moda surrealista do que fizeram aqueles dois mestres.
Sob a curadoria de Daniella Géo,
brasileira radicada em Antuérpia, a exposição exemplifica cada uma das
fases de um trabalho que caminha na direção da arte bruta, primitiva,
com muitos riscos nas paredes e animais à solta. Nos anos iniciais, até
que completasse seu primeiro livro, Boyhood (Meninos), de 1979, o
artista viajaria pelas ruas do mundo a documentar cenas cotidianas e,
nos Estados Unidos, também as manifestações pelos direitos civis e os
protestos contra a Guerra do Vietnã.
A fotografia e o estudo de psicologia
seriam seus instrumentos para conhecer o mundo, aliados à pintura
intimista de Van Gogh, que no seu entender o autorizava a ousar mais.
A sua seria uma arte de pintor desde o
início, com uma diferença importante. Não haveria outra cor além do
preto e branco a assinalar as “telas”. As imagens seriam compostas a
partir da Rolleiflex, quadradas, portanto, a contrariar pela primeira
vez o que ensinaram Cartier-Bresson e Kertész sobre a perfeição do
retângulo áureo, aquele proporcionado pela revolucionária Leica
portátil.
“Sinto-me confortável com a flex colada ao estômago enquanto olho pelo visor”, disse Ballen em entrevista a CartaCapital.
“Deste modo faço contato a partir da minha essência, mais do que a
partir apenas da mente. Além disso, gosto de minhas imagens neste
formato porque, de tal modo, nenhuma parte da composição se sobrepõe a
outra. O quadrado é a forma perfeita com que trabalhar.”
Com sua câmera, Roger Ballen partiu à
África do Sul depois da morte de Adrienne, em 1973. O desaparecimento
daquela que determinaria grande parte de sua formação cultural parecia
influenciar decisivamente sobre o tipo de imagem por ele obtida na rua.
“A morte prematura de minha mãe teve um
efeito profundo sobre mim”, diz. “Cresci em um ambiente de classe média
americana suburbana e esterilizada. Eu não tinha qualquer conceito de
morte, enquanto a morte é o conceito mais central da vida. Nunca a tinha
confrontado e, de repente, eu a tinha na minha frente. Isso me
impregnou.”
A partir de então, haveria velhos por
toda parte nas suas fotografias, a evocar os tipos de Rembrandt. Mas
também meninos folgados, com a mania do gracejo, a rir dele
frontalmente, diante dos muros. Começava seu gosto pelas poses
fotografadas, nunca coloridas. “Prefiro o preto e branco porque ele não
finge mimetizar a realidade”, esclarece. “É abstrato, minimalista e
sutil. Sempre foi e será minha paixão.”
O jovem nascia para as descobertas, as amorosas
também. Um ano antes da morte da mãe, recebeu o título de bacharel de
Artes em Psicologia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e partiu
para uma viagem pela África e Ásia. Na África do Sul conheceu a
johannesburguesa Lynda Moross. Casou-se com ela em 1982, depois de um
curioso Ph.D. em Economia Mineral, e partiu para viver no país que
transformaria sua marca de artista.
Porque necessitava de precisão nas imagens
geológicas, trocou a câmera portátil de 35 mm pelas menos ágeis, de
médio formato. Adicionou o flash. Visualizou a
arquitetura das áreas rurais, fotografou fachadas e adentrou o interior
das casas, onde percebeu as paredes manchadas, de onde pendiam muitos
fios. Nas fotos, começaram a aparecer a miséria e a decadência presentes
nas comunidades habitadas pelos brancos. A partir daí, não voltaria
mais às imagens retangulares.
Vivia-se o apartheid e o americano
de quase 40 anos voltava-se à representação humana, e da pior maneira
possível, conforme julgavam as autoridades locais. Ballen conta que não
tinha a intenção de fazer qualquer denúncia política com as imagens, uma
vez que, a seguir uma intuição desde seu berço artístico, a fotografia
deveria representar apenas um estado de perplexidade pessoal entre o
coração e a alma.
Mas, por mostrar ao mundo pela primeira
vez a precariedade e a alienação dos camponeses brancos, ainda mais
radicais do que aquelas reveladas pelo fotógrafo Walker Evans nos
Estados Unidos, durante a vigência do New Deal, Ballen foi preso
diversas vezes e sofreu ameaças de morte.
As fotos resultaram na série Platteland: Imagens da África do Sul Rural
em 1994, ano em que Nelson Mandela seria eleito presidente. O trabalho
opunha-se à imagem difundida até então, de um sul-africano próspero e
onipotente, apontando, segundo a curadora, “as fraturas existentes
dentro do próprio sistema de governo que pregava a supremacia branca e
conferia a esta etnia privilégios políticos e civis”.
A partir desta série, enquanto seu
trabalho ganhava destaque no mundo, Ballen voltava-se ainda mais para a
negação das tendências fotográficas. Ele não precisaria segui-las, uma
vez periférico, como se sentia, às grandes civilizações. Não seria, por
sorte, um artista do mercado. Nada de explorar a cor. Abaixo a fera
digital.
“Meu estilo nasceria de meu próprio
trabalho, ano após ano, camada sobre camada, distante do que ocorria no
resto do mundo. Estar isolado das correntes na África do Sul foi
essencial ao meu desenvolvimento”, ele crê. Em quatro séries mais
aprofundou suas representações: Outland (À Margem, entre 1995 e 2000), Shadow Chamber (Câmera de Sombra, entre 2000 e 2004), Boarding House (Pensão, entre 2005 e 2008) e Asylum (Asilo), que se estende até o momento.
Aos 65 anos, sem planos de deixar a África do Sul,
Ballen não conta como faz as fotos. Sustenta que a sua “é uma ciência e
uma arte”. Garante que não planeja seus “quadros”, não os dramatiza, e
registra tudo em silêncio. Nega ter treinado os animais retratados de
forma a fazê-los parecer paralisados nas fotos, como a representar o
inconsciente humano a um passo da revelação.
“Nos últimos 15 anos, os animais dominam minhas
fotografias”, ele diz. “Ao contrário do que ocorre com os homens, não
entendemos como eles processam o sentimento. Há algo absolutamente
ambíguo sobre sua presença que procuro incorporar no meu imaginário.
Cada animal que visualizei representa um arquétipo da mente humana.”
Parece importante que o espectador
desista de interpretar o que vê nas séries deste artista destemido
diante de seus fantasmas. “Para mim, é crucial que haja enigma e
metáfora no trabalho”, sustenta. “Digo frequentemente que minhas
melhores fotos são aquelas que não compreendo. Não há fórmula ou maneira
de descrever o estado mental que habilitará um fotógrafo a produzir
imagens com níveis de significado profundos.”
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