Filme questiona trajetória de radicais dos Anos 60 até hoje


“Era uma Vez em Anatólia”, quando, durante uma necropsia, um jorro de sangue do cadáver atinge uma das pessoas que está ao redor da mesa

Correio do Brasil / Reuters

"É provável que na história recente do cinema, nenhuma cena explicou melhor a diferença entre cinismo e ironia do que a final de Era uma Vez em Anatólia, quando, durante uma necropsia, um jorro de sangue do cadáver atinge uma das pessoas que está ao redor da mesa. Se fosse por mero acaso, seria ironia. Mas como foi feita de propósito por aquele que manipulava o morto, é um caso de cinismo.

É esse mesmo cinismo -às vezes silencioso, velado- que marca as 2h30 de Era uma Vez em Anatólia, dirigido pelo turco Nuri Bilge Ceylan (Os Três Macacos, Distante).

O filme levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e o da Crítica, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em 2011, e forma um belo par com “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, ganhador do prêmio principal no mesmo festival francês naquele ano.

Ambos, visualmente poderosos, são meditações sobre a vida e a morte, divagam sobre os meandros da existência, desenvolvendo a narrativa num tempo próprio, de forma quase contemplativa.

A trama, que no fundo é o que menos importa aqui, pode ser resumida como uma comitiva -incluindo médico, promotor, policiais e soldados- que percorre as estepes da região da Anatólia em busca do corpo de um homem que foi assassinado.

Uma complicação decorre de o acusado de assassinato, Kenan (Firat Tanis), alegar estar embriagado quando cometeu o crime, e não lembrando de onde escondeu o cadáver. Divididos em dois grupos, esses homens andam de um lado para outro, na península que faz parte da Turquia.

É uma longa jornada noite adentro, com a escuridão do céu caindo como um véu que encobre não apenas a alma, mas também o caráter e a verdadeira identidade desses personagens.

As imagens são distantes, e os homens, pequenas figuras que se perdem em meio à paisagem que ameaça engoli-los. A busca, em si, se torna mais importante, mais reveladora do que o que procuram. É uma busca beckettiana, em que o nada que acontece, o banal, é mais revelador em suas camadas mais profundas.

Ao mesmo tempo, o longa se vale do mesmo esvaziamento típico da obra do escritor irlandês: cada nova parada é um novo começo, que retira o significado da anterior, que obriga o público a reformular suas conclusões parciais.

Quando, finalmente, encontram o corpo, ocorre uma reviravolta, uma mudança no tom, e o filme se torna uma espécie de comédia de absurdos. Bilge Ceylan constrói uma atmosfera intoxicante, povoada por homens muitas vezes maus.
Não por acaso, o título pode remeter ao clássico do western Era uma Vez no Oeste, de Sérgio Leone. Aqui, quando o diretor mostra esses homens em close, parece que eles caberiam confortavelmente num faroeste, com suas caras sujas e malvadas. E, nesse ambiente inóspito da Anatólia, as mulheres são praticamente figuras inexistentes.

A longa duração do filme e o tempo próprio no qual a história é contada têm como função promover imersão no mundo daqueles homens, distendendo a extensão da jornada. Nela, os homens conversam.

O motorista árabe Ali (Ahmet Mumtaz Taylan), por exemplo, conta que vai até o campo para praticar tiro ao alvo. A presença feminina que ilumina o filme é a filha do prefeito -a bela moça que, segundo os homens, vai desperdiçar sua vida naquele lugar, sem qualquer expectativa para seu futuro.

Ao final, em Era uma Vem em Anatólia se revela como suas partes são importantes para compor o seu todo. É verdade que poderia subtrair uma ou outra cena, mas é exatamente desses momentos aparentemente desnecessários que a vida é composta. Os personagens podem até se encerrar num limbo, mas encontrar forças para sair se torna o verdadeiro consolo.”

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