"Capitão Philips" e a humanidade dos outros

Tom Hanks e os atores somalis que interpretaram os sequestradores se conheceram apenas no momento da gravação / Divulgação / Sony Pictures

Estrelado por Tom Hanks e cotado para o prêmio máximo do Oscar, o filme de Paul Greengras dá contexto social à crise da Somália

Eduardo Graça, CartaCapital

A imagem não é lá grandes coisas, mas os óculos de aro redondos, a cabeleira grisalha desgrenhada e a voz beirando o esganiçado atestam: é mesmo Paul Greengrass do outro lado da tela, via Skype, iniciando uma conversa com jornalistas a partir do estúdio em Londres em que os detalhes finais de Capitão Phillips estão sendo revistos. Naquele momento ainda não era possível saber que a história baseada em fatos narrados pelo capitão da marinha mercante americana Richard Phillips, expostas em livro publicado há três anos, seria uma das mais festejadas produções da safra atual de Hollywood. Filmado quase todo em alto-mar, o filme conta com um inspirado Tom Hanks como protagonista, comandante de um navio acossado por piratas somalis. Conhecido tanto por produções baseadas na realidade, como Domingo Sangrento, Voo United 93 e, mais recentemente, Zona Verde – cujos cenários, respectivamente, foram a guerra civil na Irlanda do Norte, os ataques terroristas de 11 de Setembro e a ocupação americana no Iraque – quanto pela reinvenção do gênero de espionagem com seus dois rápidos e cerebrais tomos da franquia “Bourne”, o diretor inglês revela ter sempre desejado trabalhar em cima de um tema, vá lá, ‘clássico’.

"Sim, tão clássico quanto a história de um homem em perigo neste marzão de meu Deus. E a história de Phillips é uma grande narrativa humanista. E contemporânea. Pirataria nos oceanos é algo corriqueiro e preocupante e tratar deste tema nos dias de hoje passa inevitavelmente por uma contemplação da economia globalizada, da consolidação mundial da ideia de países, sociedades e seres humanos ‘vencedores’ e ‘perdedores’. E traduzir tudo isso em forma de thriller me parecia um belo desafio", diz.

Capitão Phillips começa longe do mar, mais precisamente no interior da Nova Inglaterra (região Nordeste dos Estados Unidos), em uma pequena cidade, com o personagem-título sendo levado ao aeroporto pela mulher, vivida por Catherine Keener. No carro, os dois conversam sobre a rotina, os filhos, o corre-corre danado, um bate-papo aparentemente banal mas que ganhará sentido – e ecoará na cabeça do público – nas duas horas e meia seguintes.

 Período que Hanks passará em alto-mar, no comando de uma tripulação de 20 homens, quase sempre sob o poder de homens armados, sem muito a perder e com pouco ou nenhum conhecimento da língua inglesa, a única aparentemente dominada pelo lobo do mar. Greengrass conhece como poucos este particularíssimo universo, já que seu seu pai passou boa parte da vida no mar, trabalhando anos a fio na marinha mercante britânica. 

"Uma de minhas primeiras decisões foi a de escalar apenas atores somalis para encarnar os piratas. A Somália tem uma história tão rica quanto repleta de conflitos. Basta você passar algum tempo com jovens somalis para ver que eles estão sedentos para dividir com o mundo o que acontece, de fato, lá. Eu queria esta verdade no meu filme. Também queria que eles de fato lembrassem fisicamente os outros personagens centrais da história, que são, sim, estes piratas. Piratas muito específicos, que vêem a pirataria como uma ação de vida ou de morte no Chifre da África", diz o diretor, lembrando que, como no filme, boa parte dos jovens que ainda se arriscam atacando navios em rota para o sul da África o fazem coagidos por criminosos armados até os dentes, que aguardam a parte mais polpuda do botim em terra firme. 

Curiosamente, na última sexta-feira, o International Maritime Bureau, voltado para a monitoração da pirataria contra embarcações comerciais, informou que, por conta do aumento de patrulhas militares ocidentais, da Rússia, China e Japão na região costeira do Golfo de Áden e do Mar da Arábia, exatamente onde a ação de Capitão Phillips se dá, há uma constante diminuição de ataques piratas na região. De janeiro a 14 de outubro deste ano, a organização registrou 10 incidentes com navios mercantes na região, sendo dois deles sequestros confirmados. No ano passado, foram 75 ataques. Em 2011, 237. A ONU também confirma a queda, com 99 ataques a embarcações de países-membros no ano passado, contra 17 nos dez primeiros meses de 2013. Os senhores do crime somalis teriam deixado o mar em segundo plano e estariam agora concentrados em ações em parceria com a Al-Qaeda local, especialmente na fronteira com o Quênia. O único pirata sobrevivente ao ataque ao navio comandado por Phillips, o Alabama, da Maersk, em 2009, cumpre uma sentença de 33 anos em regime fechado nos EUA. Os demais foram mortos no local por foças militares americanas.

Piratas e mocinho da ficção só foram se encontrar no set de filmagem no momento em que o diretor filmou a cena em que os somalis tomam o navio. Ver o filme com esta informação de antemão contribui para se admirar e sorver a impressionante reação de pânico e nervosismo dos dois lados do ataque.

"Jamais vou me esquecer do momento em que os quatro atores de origem somali, absolutamente sensacionais, recrutados em Mineápolis, onde vive uma das principais comunidades somalis nos EUA, entraram no set. Fiz questão de que Tom (Hanks) só interagisse com eles no momento da filmagem. Ele estava curioso, antecipando o que iria acontecer. A tensão foi enorme. Estes rapazes nunca haviam atuado antes. Eu estava nervosíssimo.

Mas eles foram sensacionais. E no fim do primeiro take receberam uma ovação da equipe técnica. Sabe, é fácil atuar como um cara malvado de desenho animado, exagerado, histriônico. Muito mais difícil é explorar a humanidade e as forças, as contingências políticas e sociais que levaram aquelas pessoas a agir daquela maneira. Fica aqui meu tributo aos agora atores Barkhad Abdi, Barkhad Abdiraman, Faysal Ahmed e Mahat M. Ali", diz.

À boca pequena, diz-se em Hollywood que Capitão Phillips deve ser um dos filmes – ao lado de Gravidade, do mexicano Alfonso Cuarón, O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, e 12 Anos de Escravidão, do também britânico Steve McQueen – com mais indicações para o Oscar-2014, incluindo melhor filme, melhor ator e quiçá mais de um coadjuvante. O agregador de críticas Rottentomatoes revela que 94% dos críticos anglo-saxônicos aprovaram o filme, assim como 93% do público.

Além de considerarem a interpretação de Hanks como uma das melhores da carreira do duplamente oscarizado ator, resenhistas respeitados como a durona Manohla Dargis, no New York Times, seguem apontando para o que traduzem como “urgência moral” na história contada por Greengrass. Dargis celebra Capitão Phillips por “buscar insistentemente diminuir a distância entre ‘nós’ e ‘eles’” e “por surpreender ao tratar do privilégio americano e do mundo globalizado de forma profunda e original”. Como se estivesse do lado de lá da mesa de um consultório médico, ela prescreve as 2h30 de cinema a sociedades tão maniqueístas quando excludentes, que roubam qualquer traço de contexto social, de biografia, de humanidade, ao ‘outro’. Capitão Phillips estreia hoje nos principais cinemas brasileiros.

*O correspondente da Carta Capital em NY viajou ao México a convite da Sony Pictures

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