"No segundo volume, von Trier aborda pragas de nossa época, como
o politicamente correto, as terapias para curar o “vício do sexo”, a
paranoia com a pedofilia
José Geraldo Couto, do Blog do Instituto Moreira Salles, via Outras Palavras / Portal Fórum
Com a exibição do “segundo volume” de Ninfomaníaca, é
possível ter uma ideia mais clara da ambição de Lars von Trier. E ela
não é pequena. Visto em seu conjunto, em suas quatro horas de duração, o
filme, mais que um inventário de perversões sexuais, pode ser visto
como uma tragicomédia feroz sobre (ou contra) a normatização do desejo
em nossa época.
A protagonista Joe (Stacy Martin/ Charlotte Gainsbourg) é uma
aberração porque não se enquadra nas normas. Ao não saber onde colocar o
desejo, ela o dissemina por toda parte, como uma criança às voltas com
sua sexualidade polimorfa.
A segunda parte dá continuidade ao mesmo esquema narrativo da
primeira: Joe, já madura, castigada pela vida, rememora sua acidentada
trajetória para o solitário e casto homem que a recolheu na rua,
Seligman (Stellan Skarsgard). Ao jorro de experiências dela, mostradas
em flashbacks, ele tenta contrapor ensaios de ordenamento e construção
de sentido, conforme escrevi aqui a propósito do “primeiro volume”.
Acúmulo e depuração
Nesta segunda metade, além de apresentar momentos importantes do
percurso de Joe (a maternidade, o experimento masoquista, a tortura),
von Trier passa em revista – ou melhor, arrasa – pragas de nossa época
como o politicamente correto, as terapias para curar o “vício do sexo”, a
paranoia com a pedofilia.
A par desse acúmulo (de histórias, de assuntos, de situações), há
paradoxalmente uma depuração: fica mais claro do que nunca que Joe e
Seligman são duas faces da mesma moeda – o excesso e o comedimento,
pulsão e a sublimação –, ao mesmo tempo opostos e complementares em sua
solidão irredutível. Dois enjeitados que não encontram lugar na
sociedade “normal”. (Millôr Fernandes disse certa vez que, de todas as
perversões sexuais, a mais esquisita é a abstinência. Seligman talvez
seja a prova disso.)
Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, o que salta aos olhos
é uma espécie de hibridismo sistemático, um jogo de contrastes
perseguido conscientemente pelo diretor, como se ele quisesse a todo
momento desmontar o que acabou de construir. Por exemplo: o tom de
parábola, que despreza a verossimilhança e o naturalismo das situações,
parece estar em contradição com a câmera instável, de documentário ou home movie, que mutila os seres e objetos e perde a todo momento o foco.
Alusões ao cinema
Outra antinomia frequente é a que se observa entre a gravidade e o
humor, ou antes entre a intensidade dramática e o distanciamento
irônico. Isso se evidencia, nesta segunda parte, nas inúmeras alusões ao
próprio cinema.
Por exemplo: quando diz que seu conhecimento do sexo se deu unicamente pela literatura, Seligman cita três livros – Decameron, Os cantos de Canterbury e As mil e uma noites –
que são justamente os que compõem a célebre “trilogia da vida” de
Pasolini, cujo erotismo jubiloso é o contrário do calvário de Joe.
Em outra passagem, von Trier chega ao requinte ou desfaçatez de glosar um filme dele próprio, O anticristo,
ao repetir a mesma cena do menino que se levanta do berço à noite para
ver a neve, trepa na mureta do terraço e… O desfecho diferente é uma
derrisória piscadela ao espectador.
E quando a protagonista, na reunião das “viciadas em sexo”, se apresenta dizendo “My name is Joe”, é impossível não pensar no filme homônimo de Ken Loach, sobre um alcoólatra em recuperação.
Em meio a essa teia de referências (que incluem a música e as artes
plásticas), von Trier encontra espaço para produzir momentos de potente
poesia, dos quais o mais significativo talvez seja a cena em que Joe
encontra a “sua árvore”, uma árvore “bela, áspera e intratável” como o
cacto do poema de Manuel Bandeira. Ou como a sexualidade de Joe."
*Foto: Divulgação
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