O ator Jack Gleeson como Joffrey Baratheon em cena da quarta temporada do seriado 'Game of Thrones' / Divulgação/HBO |
Desde o começo, "Game of Thrones" esteve eivado de brutalidade sexual. A série, concebida como uma sequência de romances de fantasia sobre um mundo feudal sombrio, escritos por George R. R. Martin, passou por momentos tensos, entre eles o de um líder guerreiro consumando o casamento com sua noiva, ainda criança, e de um estupro de uma jovem por "meia centena de homens aos gritos, por trás de um curtume".
Essas e outras cenas causaram preocupação, mas a discussão ficou confinada aos leitores e críticos de romances de fantasia.
Agora o debate sobre a violência sexual da série se ampliou e ganhou veemência, devido ao sucesso explosivo da adaptação televisiva dos livros pela HBO.
Em sua quarta temporada, "Game of Thrones" tem média de audiência superior a 14 milhões de pessoas nos Estados Unidos, nas noites de domingo, e é a série mais assistida da rede de TV a cabo desde "Família Soprano".
Em um episódio recente, mulheres prisioneiras em um abrigo gélido são brutalizadas sexualmente. No episódio precedente, altamente controverso, uma aristocrata manipuladora que tem um relacionamento incestuoso com o irmão é forçada a fazer sexo com ele, ainda que grite não.
O estupro está presente com frequência nas tramas de programas de TV, com consequências abrangentes e duradouras para os personagens afetados. Mas os críticos de "Game of Thrones" temem que a presença tão forte do estupro no drama o tenha reduzido a um ruído de fundo, uma ocorrência rotineira e sem nada de chocante.
Muitos telespectadores ficaram incomodados com o episódio que mostrava o estupro da aristocrata Cersei Lannister por seu irmão Jaime, e protestaram em blogs, no Facebook e no Twitter. A indignação foi reforçada por comentários do diretor do episódio, que disse ao site Hitfix.com que "a cópula do casal se torna consensual, no fim".
Isso fez com que a audiência questionasse se os produtores compreendem de fato o que estão retratando. "Não foi isso que vi, e não foi isso que muita gente viu", diz Maureen Ryan, crítica de televisão do Huffington Post, que definiu a cena como um estupro inequívoco.
Os romances de Martin, conhecidos coletivamente como "Uma Canção de Gelo e Fogo", têm mais de 31 milhões de cópias em circulação e foram traduzidos para mais de 25 idiomas, de acordo com a Bantam Books, sua editora, uma unidade do grupo Random House. A série da HBO é transmitida para mais de 150 países e é o mais pirateado dos programas de TV do planeta.
Talvez seja também o título de entretenimento mais popular a retratar violência sexual com tanta frequência, tanto nas páginas dos livros quanto na série. A mais recente edição de uma série de quadrinhos de "Game of Thrones" mostra explicitamente um bárbaro se preparando para estuprar uma mulher nua, depois de conquistar sua aldeia.
Em resposta a perguntas encaminhadas por e-mail, Martin escreveu que, como artista, ele tinha a obrigação de dizer a verdade sobre a história e sobre a natureza humana.
"O estupro e a violência sexual foram parte de todas as guerras já travadas, dos sumérios da antiguidade aos nossos dias", diz Martin, 65, que vive em Santa Fe, Novo México.
"Omiti-los de uma narrativa centrada na guerra e poder teria sido fundamentalmente falso e desonesto", ele prosseguiu, "e teria solapado um dos temas dos livros: o de que os verdadeiros horrores da história humana não foram cometidos por orcs ou senhores das trevas, mas por nós mesmos".
David Benioff, e D. B. Weiss, os produtores da série na HBO e responsáveis por suas operações cotidianas, não quiseram conceder entrevistas.
Tyrion Lannister (Peter Dinklage) e sua amante, a ex-prostituta Shae (Sibel Kekilli), em cena da quarta temporada da série 'Game of Thrones', da HBO / Divulgação |
Outros programas de TV, como "Downton Abbey" e "Private Practice", incluíram estupros em suas tramas, mas eram eventos singulares, cujas repercussões foram exploradas pelas duas séries.
"Os melhores retratos não se resumem ao estupro em si como recurso dramático", disse Scott Berkowitz, presidente da Rape, Abuse and Incest National Network, uma organização norte-americana de combate à violência sexual. "Usam o estupro para contar uma história mais profunda sobre a recuperação e o efeito que isso causa na pessoa".
Mas "Game of Thrones" não parece estar seguindo esse caminho.
"Ter a violência sexual tratada com tanto descaso, é difícil ver algo assim", diz Mariah Huehner, escritora e editora de quadrinhos que contribuiu repetidamente para o debate online do tema. "É perturbador demais assistir, e não acho que eu vá aguentar muito tempo mais".
Quanto aos livros, os leitores dizem que as descrições de estupros por Martin sublinham a dureza de seu mundo, mas há quem questione o que veem como uso exagerado desse tipo de cena, e o tom muitas vezes lúrido que ele adota para escrever sobre assuntos sexuais.
"Esse negócio do 'não quer dizer sim' está lá nos livros", fiz Sady Doyle, ensaísta que escreve frequentemente sobre "Game of Thrones". "As punições sexualizadas estão lá. São parte do texto e são vitais para o texto. É algo que se repete inúmeras vezes".
Mas ela acrescenta que "chega o ponto em que você tem a sensação de que não passa um capítulo sem uma cena horrível —envolvendo quase sempre uma mulher como personagem—, quase como se ele estivesse tentando provar que sim, esse é um trabalho de literatura sombrio e assustador".
Martin diz que sua filosofia como escritor é mostrar e não contar,e fazê-lo requer "detalhes sensórios vívidos".
"Se a cena em questão é de sexo, alguns leitores podem considerá-la intensamente desconfortável", ele diz, "e isso é 10 vezes mais verdadeiro para cenas de violência sexual. Mas é preciso que seja assim. O objetivo de algumas cenas é que sejam desconfortáveis, perturbadoras e difíceis de ler".
Ian McElhinney, Emilia Clarke, Iain Glen e Nathalie Emmanuel em cena da quarta temporada de 'Game of Thrones' |
Ryan, do Huffington Post, disse em entrevista que "Game of Thrones" possui "uma incrível capacidade de fazer com que você se importe com pessoas que fizeram coisas realmente terríveis —é algo que acontece repetidamente, e acho que é o ponto forte do trabalho".
"Agressões sexuais acontecem no mundo", disse Ryan. "É algo que processamos via cultura popular. As pessoas que produzem esses trabalhos deveriam se esforçar por exibir todos os aspectos da experiência —mostrá-la tanto do ponto de vista de quem sobreviveu ao ataque quanto da pessoa que o perpetrou".
"É assim que essa experiência passa a ser respeitada", ela diz. "É assim que ela deixa de ser exploração".
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