Os personagens de Fabio Audi e Guilherme Lobo em cena do filme 'Hoje eu Quero Voltar Sozinho' |
Matheus Pichonelli, CartaCapital
Enfim fui assistir Hoje eu quero voltar sozinho, filme de
Daniel Ribeiro que, com todo mérito, se tornou uma referência sobre os
conflitos da juventude dos anos 2000 (sobre o assunto, leiam o ótimo
relato da Carol Almeida clicando AQUI).
Para quem não acompanhou o frisson, trata-se da história de um jovem
cego, interpretado por Guilherme Lobo, que às portas da adolescência se
descobre apaixonado por um aluno novo da classe. Ou melhor: não se trata
da história de um jovem cego que às portas da adolescência se descobre
apaixonado por um novo aluno da classe. Sem o esforço de resumir a trama
em uma sinopse, o filme é um retrato de um período de descobertas.
Muitas. Entre elas a da sexualidade.
Não é uma escolha aleatória: ao tirar do centro das atenções a orientação sexual do personagem, e transformá-la em um evento paralelo em sua caminhada para o mundo adulto, o diretor consegue traçar o desenho de uma juventude bonita, possível e sem juízo final, como as "diversas alegrias" da música de Caetano Veloso. Nessa juventude possível, os papeis que conhecemos na infância são invertidos: vence quem assume o que se quer e perde quem faz disso um alarde.
No filme, o único garoto de toda a escola que faz chacota das diferenças dos colegas se dá mal. O espertão de outro tempo (o nosso tempo?) é o imbecil de hoje. É dele que o espectador tem pena, e não do jovem cego que a certa altura da vida terá de lidar com as angústias de ser diferente. Neste mundo possível, o preconceito contra a sexualidade (porque o personagem é alvo de piadas por ser cego, mas não por ser gay) é uma arma de guerra enferrujada, uma peça de museu de uma História superada. No filme, aliás, a guerra é vencida sem um único disparo. O caminho do personagem é leve. Nele não há tropeços ou angústias além dos inevitáveis.
Ao fim da sessão, muitos se questionaram se Hoje eu quero voltar sozinho poderia ser lido como uma alegoria de uma nova realidade, distante alguns anos da adolescência de boa parte dos espectadores e a alguns séculos de um debate adiado (na verdade negligenciado) por educadores, familiares, figuras públicas e autoridades. Tendemos a acreditar que sim: quem hoje está às portas dos 30 ou 40 anos talvez se surpreenda ao encontrar nas escolas um ambiente adequado à diversidade, com meninos de mãos dadas com meninos ou meninas abraçadas com meninas. No filme, os pais do protagonista são compreensivos, a professora negra não ouve ofensas por causa da sua cor, as meninas não são criadas para encontrar o sentido da vida no casamento e na maternidade e os meninos não são os ogros a disputar no tapa os circuitos da consagração.
Mas, fora desse retrato possível, torcedores ainda arremessam bananas e imitam macacos para desestabilizar o jogador ou o árbitro de futebol; mulheres são violentadas em programas de humor, transportes coletivos, discursos sexistas e categorias (“só ganha respeito quem se dá o respeito”); deficientes não contam com rampas, calçadas lisas e vagas adequadas; casais gays sofrem diariamente a violência física e psicológica promovida pelos prepostos do atraso.
Nada muito diferente da minha adolescência, nos já distantes anos 1990, quando bastava parecer gay para ser estraçalhado. O alvo não precisava sequer sair do armário. Todos achavam graça na menina quando dançava na boquinha da garrafa, mas se o menino rebolasse, ganhava bifas na orelha até desentortar. Ao mesmo tempo, as meninas que, ao amadurecerem, administravam o próprio corpo sem obedecer às ordens criadas por pais e professores eram escorraçadas tanto pelas meninas de família como pelos meninos rejeitados (a cena final de Ninfomaníaca, tão abjeta quanto real, não me deixa mentir). E bastava o jovem negro pisar nos espaços historicamente reservados aos filhos dos brancos para ouvir todo tipo de ofensas de quem dizia não existir racismo, apenas brincadeiras entre amigos. Chamar alguém de macaco era, e é, a forma mais eficiente de dizer que o colega poderia até ocupar certos espaços da elite, mas jamais seria a elite, como bem escreveu Negro Belchior sobre o caso Daniel Alves (leia AQUI).
Sem o peso dessa execração histórica, os jovens de Hoje eu quero voltar sozinho parecem livres para lidar apenas com os dilemas universais: o ciúme da amiga, a superproteção da mãe, o medo da rejeição, a timidez, a incompreensão, as mudanças no corpo, o trabalho da escola, o fim das férias e as pequenas transgressões, como fugir de casa para ver (ou não ver) o eclipse ou beber escondido dos pais. Tudo é muito real, e familiar ao espectador, inclusive a ingenuidade aparente dos diálogos entre adolescentes.
Esta é a realidade hoje?
É e não é. Na tela ou nas ruas, o que se vê atualmente é uma geração em certa medida privilegiada pelo acúmulo de combates: é mais conectada, mais atenta, tem o discurso mais afiado, é mais apta ao confronto e menos propensa a acreditar em ensinamentos ancestrais, entre eles o de que existem papeis definidos em uma sociedade biparental, heteronormativa e monogâmica. Nascida em um período em que se pode dizer o que se pensa, para o bem e para o mal, e com a tecnologia em pleno domínio, a juventude da segunda década dos anos 2000 consegue se agrupar, inclusive em fóruns de discussão em plena atividade na internet, e combater a seu modo um mundo fundado no privilégio e na ignorância. Mas o mesmo meio que espalha consciências espalha também o terror, como se vê diariamente em correntes, blogs e comunidades dedicadas à misoginia e à apologia da violência contra gays, negros e pobres. (Estamos em 2014 e quem defende o direito de estar vivo ainda é acusado em rede nacional de tentar implantar a ditadura gay ou o ódio racial no País).
No Brasil real, nas pequenas vilas, nas pequenas cidades e nos bairros afastados da metrópole, esse embate entre velhos modelos produz uma tensão latente. Não são apenas filhos a se confrontar com a moralidade consagrada dos pais, mas filhos a se confrontar com a moralidade dos filhos incapazes de refutar a moralidade consagrada dos pais. Daí a reprodução de um mundo que às vezes imaginamos enterrado, com as velhas piadinhas, as velhas perseguições, os velhos constrangimentos.
Nesse sentido, o mundo possível desenhado no filme de Daniel Ribeiro é mais que uma utopia. É um sopro de esperança embalado em um recado: a patrulha já não é dominante e está com os dias contados. Nesse mundo possível, ninguém precisa ser infeliz em nome de modelos. Ninguém precisa sofrer para não decepcionar os pais ou os amigos. Esse mundo possível pode ser agora ou pode ser em breve. Pode não ser unânime, mas existe. Nele é possível cantar a plenos pulmões que, enfim, toda maneira de amor vale amar."
Não é uma escolha aleatória: ao tirar do centro das atenções a orientação sexual do personagem, e transformá-la em um evento paralelo em sua caminhada para o mundo adulto, o diretor consegue traçar o desenho de uma juventude bonita, possível e sem juízo final, como as "diversas alegrias" da música de Caetano Veloso. Nessa juventude possível, os papeis que conhecemos na infância são invertidos: vence quem assume o que se quer e perde quem faz disso um alarde.
No filme, o único garoto de toda a escola que faz chacota das diferenças dos colegas se dá mal. O espertão de outro tempo (o nosso tempo?) é o imbecil de hoje. É dele que o espectador tem pena, e não do jovem cego que a certa altura da vida terá de lidar com as angústias de ser diferente. Neste mundo possível, o preconceito contra a sexualidade (porque o personagem é alvo de piadas por ser cego, mas não por ser gay) é uma arma de guerra enferrujada, uma peça de museu de uma História superada. No filme, aliás, a guerra é vencida sem um único disparo. O caminho do personagem é leve. Nele não há tropeços ou angústias além dos inevitáveis.
Ao fim da sessão, muitos se questionaram se Hoje eu quero voltar sozinho poderia ser lido como uma alegoria de uma nova realidade, distante alguns anos da adolescência de boa parte dos espectadores e a alguns séculos de um debate adiado (na verdade negligenciado) por educadores, familiares, figuras públicas e autoridades. Tendemos a acreditar que sim: quem hoje está às portas dos 30 ou 40 anos talvez se surpreenda ao encontrar nas escolas um ambiente adequado à diversidade, com meninos de mãos dadas com meninos ou meninas abraçadas com meninas. No filme, os pais do protagonista são compreensivos, a professora negra não ouve ofensas por causa da sua cor, as meninas não são criadas para encontrar o sentido da vida no casamento e na maternidade e os meninos não são os ogros a disputar no tapa os circuitos da consagração.
Mas, fora desse retrato possível, torcedores ainda arremessam bananas e imitam macacos para desestabilizar o jogador ou o árbitro de futebol; mulheres são violentadas em programas de humor, transportes coletivos, discursos sexistas e categorias (“só ganha respeito quem se dá o respeito”); deficientes não contam com rampas, calçadas lisas e vagas adequadas; casais gays sofrem diariamente a violência física e psicológica promovida pelos prepostos do atraso.
Nada muito diferente da minha adolescência, nos já distantes anos 1990, quando bastava parecer gay para ser estraçalhado. O alvo não precisava sequer sair do armário. Todos achavam graça na menina quando dançava na boquinha da garrafa, mas se o menino rebolasse, ganhava bifas na orelha até desentortar. Ao mesmo tempo, as meninas que, ao amadurecerem, administravam o próprio corpo sem obedecer às ordens criadas por pais e professores eram escorraçadas tanto pelas meninas de família como pelos meninos rejeitados (a cena final de Ninfomaníaca, tão abjeta quanto real, não me deixa mentir). E bastava o jovem negro pisar nos espaços historicamente reservados aos filhos dos brancos para ouvir todo tipo de ofensas de quem dizia não existir racismo, apenas brincadeiras entre amigos. Chamar alguém de macaco era, e é, a forma mais eficiente de dizer que o colega poderia até ocupar certos espaços da elite, mas jamais seria a elite, como bem escreveu Negro Belchior sobre o caso Daniel Alves (leia AQUI).
Sem o peso dessa execração histórica, os jovens de Hoje eu quero voltar sozinho parecem livres para lidar apenas com os dilemas universais: o ciúme da amiga, a superproteção da mãe, o medo da rejeição, a timidez, a incompreensão, as mudanças no corpo, o trabalho da escola, o fim das férias e as pequenas transgressões, como fugir de casa para ver (ou não ver) o eclipse ou beber escondido dos pais. Tudo é muito real, e familiar ao espectador, inclusive a ingenuidade aparente dos diálogos entre adolescentes.
Esta é a realidade hoje?
É e não é. Na tela ou nas ruas, o que se vê atualmente é uma geração em certa medida privilegiada pelo acúmulo de combates: é mais conectada, mais atenta, tem o discurso mais afiado, é mais apta ao confronto e menos propensa a acreditar em ensinamentos ancestrais, entre eles o de que existem papeis definidos em uma sociedade biparental, heteronormativa e monogâmica. Nascida em um período em que se pode dizer o que se pensa, para o bem e para o mal, e com a tecnologia em pleno domínio, a juventude da segunda década dos anos 2000 consegue se agrupar, inclusive em fóruns de discussão em plena atividade na internet, e combater a seu modo um mundo fundado no privilégio e na ignorância. Mas o mesmo meio que espalha consciências espalha também o terror, como se vê diariamente em correntes, blogs e comunidades dedicadas à misoginia e à apologia da violência contra gays, negros e pobres. (Estamos em 2014 e quem defende o direito de estar vivo ainda é acusado em rede nacional de tentar implantar a ditadura gay ou o ódio racial no País).
No Brasil real, nas pequenas vilas, nas pequenas cidades e nos bairros afastados da metrópole, esse embate entre velhos modelos produz uma tensão latente. Não são apenas filhos a se confrontar com a moralidade consagrada dos pais, mas filhos a se confrontar com a moralidade dos filhos incapazes de refutar a moralidade consagrada dos pais. Daí a reprodução de um mundo que às vezes imaginamos enterrado, com as velhas piadinhas, as velhas perseguições, os velhos constrangimentos.
Nesse sentido, o mundo possível desenhado no filme de Daniel Ribeiro é mais que uma utopia. É um sopro de esperança embalado em um recado: a patrulha já não é dominante e está com os dias contados. Nesse mundo possível, ninguém precisa ser infeliz em nome de modelos. Ninguém precisa sofrer para não decepcionar os pais ou os amigos. Esse mundo possível pode ser agora ou pode ser em breve. Pode não ser unânime, mas existe. Nele é possível cantar a plenos pulmões que, enfim, toda maneira de amor vale amar."
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