Filme 'quadrado' escancara a solidão nas grandes cidades

Sem que seja reduzido a ela, o filme pode ser resumido em uma palavra: angústia
'O Homem das Multidões', de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, acompanha o cotidiano de Juvenal, um maquinista de metrô que, sem companhia, se mistura ao aglomerado do centro para se sentir menos só

Xandra Stefanel, RBA

"A rua em questão é uma das principais artérias da cidade, e tinha estado apinhada de gente o dia inteiro. Mas à medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os lampiões já estavam todos acesos, dois fluxos densos e contínuos de gente corriam diante da porta. Eu nunca estivera antes em situação parecida naquele momento específico da noite, e o mar tumultuoso de cabeças humanas me enchia, portanto, com uma emoção deliciosamente nova. Renunciei, afinal, a todo interesse pelas coisas de dentro do hotel e fiquei absorto na contemplação da cena lá fora."

Este "mar tumultuoso de cabeças humanas" descrito no conto O Homem da Multidão, de Edgar Allan Poe, ilustra bem o clima do filme dirigido pelo mineiro Cao Guimarães e pelo pernambucano Marcelo Gomes, que estreia nesta quinta-feira (31). O Homem das Multidões conta a história de Juvenal (Paulo André), um solitário maquinista do metrô de Belo Horizonte que encontra conforto quando se mistura à aglomeração no centro da cidade em busca de companhias que ele não tem na vida particular.

A multidão de Poe é transformada, no longa-metragem, em um simulacro dos nossos dias: apesar de cada vez mais conectada, a sociedade sofre com os vazios individuais, piorados com o ritmo frenético imposto nas grandes cidades. A tela do filme, de formado quadrado e sufocante, parece ser tanto a janela do metrô pela qual Juvenal vê seu dia passar, quanto o formato das fotos do aplicativo Instagram, no qual, assim como no Facebook, todas as vidas parecem felizes e completas.

Enquanto Juvenal carrega multidões durante todo o dia, Margô (Silvia Lourenço), a controladora de tráfego, observa sozinha tudo o que se passa nas plataformas. Sua vida limita-se a cuidar do pai doente (Jean-Claude Bernardet) e procurar alguma interação social pela internet. Talvez por notar que o maquinista sofre do mesmo mal, solidão crônica, tenta uma aproximação angustiante.

O filme, boa parte do tempo silencioso, contrasta com a verborragia desesperada de Margô, ansiosa para ter alguém com quem dividir a vida. Ao conhecer, pela internet, um cara interessante, se apressa em agarrar a oportunidade por meio de um casamento. "Achei um rapaz que é bem o meu perfil", diz. Sem ter a quem convidar para ser padrinho, ela insiste com Juvenal que assine como testemunha no cartório. Contrariado, ele aceita.

Os movimentos de câmera, os tons da fotografia (cuja direção é de Ivo Lopes Araújo) e o som (ou a ausência dele) fazem com que assistir ao O Homem das Multidões seja uma experiência extremamente inquietante. A sensação é de elevar à décima potência o sentimento de solidão tão comum nos nossos dias.

Não é, portanto, um filme de fácil digestão, mas sim uma pílula de reflexão sobre uma sociedade que proporciona cada vez mais relações vazias e individualistas. Sem que seja reduzido a ela, o filme pode ser resumido em uma palavra: angústia.

O Homem das MultidõesRoteiro e direção: Cao Guimarães e Marcelo Gomes
Produção: Beto Magalhães e João Vieira Jr.
Coprodução:
Cao Guimarães, Chico Ribeiro, Marcelo Gomes e Ofir Figueiredo
Produtores associados:
Silvia Lourenço e Juliano Magalhães
Direção de fotografia:
Ivo Lopes Araújo
Direção de arte:
Marcos Pedroso
Montagem:
Cao Guimarães, Marcelo Gomes e Lucas Sander
Direção de produção:
Lívia de Melo
Figurino:
Rô Nascimento
Preparação de elenco:
Pedro Freire
Desenho de som e trilha sonora:
O Grivo
Elenco:
Paulo André e Silvia Lourenço
Participação especial:
Jean-Claude Bernardet
Produção: Cinco em Ponto e Rec Produtores Associados
Distribuição: Espaço Filmes
País: Brasil
Ano: 2013
Duração: 95 min.
Classificação: 14 anos

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