Wilson Ferreira, Cinegnose
"Aclamado em diversos
festivais de filme de terror, o filme independente “Skew” (2011) parte
de uma curiosa teoria da fotografia formulada pelo escritor francês
Balzac no século XIX: toda fotografia é um “crime espectral” – cada
exposição à câmera nos rouba uma das camadas espectrais que compõem o
nosso ser. A cada fotografia morremos um pouco. Com essa premissa, o
diretor Sevé Schelenz constrói uma narrativa com câmera na mão que no
início parece se filiar a estilo de filmes como “Bruxa de Blair” ou
“Rec”. Apenas parece. Ao se inspirar no temor de Balzac, Schelenz não
só leva a premissa às últimas consequências como também a atualiza: na
verdade, as imagens estariam roubando não as nossas camadas espectrais,
mas as camadas de memórias que compõem quem nós somos. Filme sugerido
pelo nosso leitor Felipe Resende.
Considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, o escritor francês, autor de A Comédia Humana e Ilusões Perdidas,
Honoré de Balzac (1799-1850) tinha fortes objeções contra a fotografia.
Ele só se permitiu ser “daguerreotipado” (o primeiro nome dado à
fotografia a partir do nome do inventor Louis Daguerre) uma vez, uma
pouco antes da sua morte.
Influenciado pelo misticismo esotérico do poeta Johann Lavater
(1741-1801) e das teorias da hipnose de Franz Mesmer (1734-1815)
associadas ao magnetismo animal, Balzac acreditava que a fotografia
praticava uma espécie de “crime espectral”:
“Todos os corpos físicos são compostos na sua totalidade por
infinitas camadas fantasmagóricas, uma em cima da outra. A fotografia
tem o poder de retirar cada camada espectral superior e a transfere para
a fotografia. Na realidade exposições sucessivas à câmera fazem ser
perdidas essas camadas fantasmagóricas, isso é, a própria essência da
vida”.
Essa é ao mesmo tempo a premissa e a citação que abre o intrigante filme de terror independente e de baixíssimo orçamento Skew (2011), do diretor e roteirista Sevé Schelenz. Totalmente filmado com uma câmera na mão, a princípio Skew pode parecer mais do mesmo: estilo mockmentary (falso
documentário - aparentemente assistimos a uma gravação de um vídeo
perdido sobre uma viagem de carro de três jovens) que imitaria o terror
de filmes como Bruxa de Blair, Cloverfield, Rec ou Atividade Paranormal.
Mas o diretor resolveu ir por um outro caminho: faz uma metalinguagem
com esse próprio subgênero de terror baseado em planos sequências de
supostas gravações de vídeo perdidas. Ao longo de pouco mais de uma
hora, percebemos que não estamos diante de mais um filme “câmera na
mão”. As pistas deixadas pelo diretor ao longo da narrativa pode nos
levar a conclusões desconcertantes e que podem negar as próprias imagens
que vemos – há ou não uma câmera? A referencia à teoria fotográfica de
Balzac feita na abertura do filme explica as assustadoras imagens
captadas em lances de segundos pela lente?
O Filme
Dois casais (Simon e Laura, Rich e Eva) vão fazer uma viagem de carro
para estarem em uma cerimônia de casamento de algum amigo em comum. Por
algum motivo que inicialmente não sabemos, Laura desistiu da viagem na
última hora. Os três decidem mesmo assim seguir viagem. Simon leva
consigo uma câmera, decidindo registrar todo o percurso. Mas o que
parecia ser um capricho de Simon, aos poucos se revela uma obsessão:
decide praticamente filmar 24 horas do tempo, constrangendo cada vez
mais Rich e Eva.
Simon revela que essa obsessão resulta de um trauma da infância pelo
fato de seus pais nunca terem feito se quer um vídeo ou fotografia dele,
resultando que acabou não tendo nenhuma recordação da sua infância
fixada em imagem. Simon grava absolutamente tudo, menos o próprio rosto:
ele parece não querer permitir ser capturado em imagens por decorrência
de algum desequilíbrio emocional pelo qual está passando. Eva suspeita
que tenha algo a ver com a sua amiga Laura e o porquê dela não ter vindo
para a viagem.
Simon começa a ver um fenômeno estranho através da câmera: algumas
pessoas aparecem momentaneamente com o rosto como que borrado – mas se
percebermos melhor, remete a estranha teoria de Balzac: na verdade
parece que vemos sucessivas camadas espectrais das próprias pessoas que
não mais se sincronizam, criando a forma de um borrão. Simon descobre
que sempre que isso corre, a pessoa em questão morre de alguma forma
violenta – assassinada, acidente automobilístico etc.
Porém, ao retroceder a fita para rever o fenômeno, percebe que não
foi gravado. Essa será mais uma das intrincadas pistas que o roteiro
deixa ao longo da narrativa para que, só nos segundo finais possamos
chegar a alguma conclusão, ao melhor estilo do filme Cidadão Kane e o mistério da palavra “Rosebud”.
O terror de Simon ao perceber a recorrência do fenômeno e o
aparecimento de espectros de pessoas já mortas (preste atenção ao
fantasma feminino que aparece na estação de gasolina que estará
conectado com a sequência final) somente fará crescer a paranoia e a
desconfiança entre todos, tornando uma divertida viagem num assustador
inferno.
O que é a fotografia?
A fotografia se difere de qualquer outro tipo de imagem como a
pintura pela correspondência física entre a imagem do fotografado e o
objeto. A semiótica, por exemplo, fala em índice como se a fotografia
fosse um fragmento do objeto. Sendo assim, há uma relação física, assim
como impressões digitais deixadas em uma superfície.
A desconfiança “primitiva” diante do duplo representado pela
fotografia (no passado era o espelho) presente na teoria de Balzac tem
um evidente origem no misticismo esotérico do século XIX em relação às
novas tecnologias como a eletricidade e o magnetismo. No caso de Balzac,
inspirado em Lavater e suas teorias sobre as conexões o corpo físico e a
alma viu na imagem fotográfica um misterioso roubo espectral: quanto
mais somos fotografados, menos vivemos.
Mas tanto em Balzac como nas primeiras culturas indígenas que tomaram
contato com antropólogos que carregavam suas câmeras, há uma verdade:
pelo menos semioticamente como um signo indicial, algo físico nosso está
sendo capturado pela imagem – as partículas de luz refletidas pelos
nossos corpos e capturadas por um negativo.
Mas o filme Skew parece
atualizar essa intuição do século XIX de Balzac na figura do personagem
Simon e no trauma de não ter tido memórias da infância por jamais ter
sido filmado ou fotografado. E se as imagens estivessem nos roubando não
as nossas diversas camadas etéricas, mas as camadas das nossas
memórias?
A preocupação de Platão
Na antiguidade grega, o filósofo Platão foi o primeiro a
manifestar preocupação com uma nova tecnologia de comunicação: a
escrita. Para ele a escrita poderia ser uma fonte de esquecimento, ao
desistirmos da tradição oral e da necessidade de internalizarmos nossas
experiências por meio de técnicas como a mnemônica. Nossa experiência
seria armazenada exteriormente por meio de um estoque de signos,
acessíveis quando quisermos. Estaríamos para sempre dependentes dos
suportes físicos, abandonando a memória e a vivencia."
Matéria Completa, ::AQUI::
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