O susto ao som da cumbia de los Andes

"O filme peruano 'A teta assustada' mostra uma doença existente nas lendas populares que pulsa no imaginário de alguns povos andinos. 

Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior

Não é exatamente um pequeno grande filme.  Mas ele é um pequeno – uma hora e 24 minutos de espetáculo – precioso e surpreendente filme. Ainda mais vindo de um país cuja cinematografia não tem tido nada de mais a declarar. A Teta Assustada (La teta asustada), sucesso internacional quando foi lançado, seis anos atrás, ganhou o Urso de Ouro em Berlim, e outros prêmios em Havana e Guadalajara, além de melhor atriz e direção no nosso Festival de Gramado. De quebra, foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009. Chamou a atenção, portanto, lá fora e aqui, no Brasil, onde a crítica, na época, foi entusiasmada.

Nossa sugestão é revê-lo nesta semana na qual uma importante Cúpula da Unasul está sendo aguardada com expectativa. Será mais uma oportunidade para conhecer melhor a cultura popular, os medos, o sofrimento, as crenças, costumes, raízes e lendas dos nossos conterrâneos latino-americanos.


A direção e roteiro de A teta é de Claudia Llosa, 39 anos, sobrinha do escritor Mario Vargas Llosa. Ela apresenta a história de Fausta, moça indígena moradora da periferia de Lima, que implantou uma batata na sua própria vagina para se proteger e evitar possíveis futuros estupros. Sua mãe idosa, recém-morta, sofrera violência sexual durante os anos do “terrorismo” no Peru, como se registra no decorrer da narrativa, e ela própria era fruto de um desses estupros. A mãe havia sido vítima dos guerrilheiros do Sendero Luminoso, que violavam camponesas suspeitas de colaborarem com o governo ou dos militares que os combatiam e por sua vez também atacavam as mulheres? Não fica claro.

Embalado pelas pungentes canções que lamentam perdas irreparáveis, saudades infinitas, e ritmadas pelas danças da cumbia andina nas longas cerimônias de casamentos, a sua bela trilha musical às vezes é alegre e contagiante; em outras assume o tom lancinante do lamento. A atriz protagonista, de voz cativante e extrema sensibilidade, Magaly Solier, sozinha, carrega bem o filme. E na trama, mais uma vez, como vem ocorrendo na maioria das produções atuais realizadas no continente, é mostrado o abismo (ainda) intransponível separando e contrapondo as classes populares, o povo, e a burguesia da casa grande – os abastados. Desigualdade devastadora.

A jovem Fausta teria, segundo crenças antigas e o folclore peruano, uma doença rara, a teta assustada, transmitida pelo pavor e sofrimento das mães estupradas às suas filhas através da amamentação. Nos momentos de pânico e de susto, seu nariz sangra abundantemente.

No presente, porém, Fausta precisa enfrentar a morte da mãe, sua única amiga, e pretende enterrá-la em sua cidade natal, na província à beira do mar. Mas não tem dinheiro para tal.

Trabalhará como doméstica na casa de rica e conhecida cantora de música erudita que vive uma crise de criatividade e está prestes a se apresentar no seu concerto anual. Fausta precisa do salário para o enterro da mãe. Ao entrar no emprego os seus dentes e as unhas são examinados, e o corpo deve ser limpo. A moça é tratada como coisa e objeto - escrava. É sempre subserviente.

Ao ouvi-la cantarolar uma bela canção de raiz popular, um pouco criada pela invenção da própria Fausta, que fala de saudade, do esquecimento e da falta – ‘não me olvide’ -, a patroa se inspira no tema, apropria-se dele e o transforma em música ‘culta’ para deleite dos amantes da erudição. É grande o sucesso.

Acaba-se, a partir daí, a pequena vida de Fausta na casa grande. A culpa e o rancor da rica mulher por tê-la usado são maiores do que o respeito e o reconhecimento do papel importante que a jovem empregada desempenhou nesse episódio secreto da sua vida profissional.

De volta para casa, vinda do concerto, à noite, Fausta é posta para fora do automóvel da patroa.

A teta assustada é uma doença existente nas lendas populares. Ela pulsa no imaginário de alguns povos andinos. A semiescravidão em que vivem moças pobres de origem semelhante à de Fausta, vindas da periferia das metrópoles e das províncias dos países da América Latina, não. É uma realidade ainda no Brasil onde a legislação trabalhista luta para aprofundar os direitos das domésticas.

Também não é folclore a quase epidemia de estupros que grassa não apenas no Peru, mas nas duas Américas, México e EUA inclusive. Há dois anos o Brasil ocupava o primeiro lugar no índice de crimes por estupro. Colômbia e Venezuela vinham em seguida. Os últimos números levantados indicam que 143 mil casos de estupros por ano são registrados no país. Além daqueles que não são denunciados – e são muitos mais.
Até uma década e pouco atrás  o estupro matava mais, na região, do que o câncer, os acidentes de carro e a malária.
Compreende-se um dos motivos pelos quais (talvez) A teta assustada tenha sido um forte sucesso lá fora.  Tons de realismo mágico estão impregnados na narrativa de Fausta e no filme de Claudia Llosa. Mas aqui, milhares de mulheres e de meninas sabem que o estupro e a humilhação podem estar à espreita, no  cotidiano de um país que, vergonhosamente, exalta o machismo. Para elas não há mágica. É só mesmo realismo."
 

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