Renato Russo - O poeta da juventude dos anos de 1980



“Introdução - Segundo o filósofo Aristóteles (384-322 a. C.), o primeiro teórico da literatura, que utilizou como critério de classificação dos gêneros literários a qualidade da palavra utilizada, o gênero lírico tem por característica a palavra "cantada". É com base nesta classificação que trataremos da produção poética de Renato Russo, nascido Renato Manfredini Junior em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro, e falecido a 11 de outubro de 1996, que marcou a história de nosso país através de suas letras, principalmente, e atendendo também à descrição de gênero encontrada em Salvatore D´Onofrio:

"O gênero lírico, em suas origens, está profundamente ligado à musica e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia lírica deixa de ser composta para ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva traços de sonoridade por meio dos elementos fônicos do poema: metros, acentos, rimas, aliterações, onomatopéias. Sinais evidentes dessa interação podem ser encontrados nas denominações das formas poemáticas (soneto, canção, balada, etc.) e em algumas espécies de arte que, ainda hoje, cultivam a simbiose musica-palavra: o teatro da ópera, o musical, a canção popular."

Acreditamos que em parte essa grande aceitação se ao fato de que Renato falava com propriedade das angústias da juventude do seu tempo, contribuindo para o entendimento desta sociedade, na medida em que refletia esse sentimento de geração perdida pós década de 60. Este será o nosso ponto de partida: as letras das músicas. Compartilho da opinião de Beatriz Resende, com relação à contemporaneidade, " É o presente que me fascina neste inicio de século. Por vezes assusta, mas seduz sempre. Há, porém, ao escrever -e não apenas viver - o presente algumas inseguranças quase insuportáveis." Continuamos a defender sua atuação como poeta, embora tenha entrado para a nossa história como líder de uma banda que contava com composições de cunho

Para este estudo selecionamos apenas quatro letras de músicas suas, gravadas no Álbum AS QUATRO ESTAÇÕES em 1989, apesar de a sua produção ter sido muito vasta. A Legião Urbana influenciou toda uma geração, a partir da década de 1980,considerando a complexidade dos temas abordados e a extensão de algumas letras, como é o caso da epopéia FAROESTE CABOCLO, que merece destaque por sua constituição. A música conta a história de um rapaz egresso do interior do país, em busca de melhores condições de vida e que chega a um fim trágico.

Há Tempos - Logo no primeiro verso, podemos perceber o peso da tristeza, reforçado pela comparação com cocaína. E qual poderia ser a virtude que perdemos? Me parece que sejam as possibilidades inerentes ao fato de estarmos vivos e sermos jovens, as virtudes que estão sendo desperdiçadas. Poderíamos pensar também na precarização da qualidade de vida, na medida em que, naquele momento de crise econômica permanente, era preciso trabalhar muito e muito tempo, perdendo assim o espaço para outras realizações humanas, como cultura, lazer e amor.

O sonho de que não me lembro seriam, então, as realizações das quais a maioria das pessoas está afastada pelo estilo de vida corrido; podendo ser também uma referência ao sentimento de esperança na evolução do ser humano, a era de Aquarius, apregoada pelos hippies, antes das ditaduras da década de 1960. Pesa a desesperança através de toda a composição. Na quinta estrofe parece-me que, depois de constatar a tristeza de seu interlocutor, fizesse um chamado à sua reação, como a lembrar bravatas anteriores. Posso ver também alguma crítica àqueles que, antes revolucionários contra o sistema, estivessem, naquele momento, se acomodando em suas estruturas. Ao final da música, fico com a impressão de que a pessoa para quem ele canta não lhe estivesse dedicando nenhuma atenção, talvez por estar drogada, ou esteja lamentando o fato da água ser limpa, limpa demais para ser contaminada pela morte que acabaria com toda aquela tristeza.

Pais e Filhos - Esta composição começa com o final de uma trajetória, representado pelo suicídio de alguém que não conhecemos, mas que poderíamos ter conhecido. Sendo assim, a história desta pessoa começaria a ser contada a partir da terceira estrofe. Olhando por outro ponto de vista, pela notícia do suicídio de alguém, talvez num noticiário que esteja sendo assistido por uma família, pó rum pai e um filho, visto que na estrofe seguinte alguém diz: "dorme agora..." como que para proteger um ser mais frágil. A esperança de um futuro melhor vem na perspectiva de um filho, com nome de santo. Um filho para ser bom, um futuro bom. O refrão, composto por dois versos, representa a condição humana, talvez, mais difícil de suportar: a finitude iminente, mesmo que sem data pré-definida para acontecer. Aquilo que, segundo o poeta, deve nos impelir a ação.

Na sexta estrofe temos as possibilidades de vida encontradas na nossa sociedade, iniciadas por questionamentos comuns a todo o ser humano; o contraste entre o geral e os específicos: o pai que é cuidado pelo filho; o filho de pais separados; o abandonado pelos pais; o andarilho e o que está dentro dos padrões desejados. Todo um jogo entre as várias posições em que ficamos, ora pais, ora filhos. Na estrofe seguinte, novamente a indissociável condição humana: "sou uma gota d´água, ... um grão de areia", ou seja sou um na multidão, como todo mundo. Tão comum como são os problemas de relacionamento entre pais e filhos e filhos que serão pais. O que fica é a reflexão, através de questionamentos: é possível fazer diferente do que nossos pais fizeram; é possível aceitar, portanto sem mágoa, a atuação dos nossos pais; é possível cuidar deles quando, velhos, precisam de nós; é justo permitir que nossos filhos carreguem esse peso; é possível não sermos um peso - tanto enquanto pais como filhos. Poderíamos fazer mais folhas e folhas de questionamentos, mas pararemos por aqui.

Quando o sol bater na janela do seu quarto - Uma letra/poema para dizer coisas simples com beleza. Quanto à forma, vemos uma composição iniciada pelo refrão de dois versos, intercalado por estrofes de 6 versos. O caminho, que é um só, pode ser a vida para nós que estamos vivos. E mais, um caminho que é um só por ser aquele que nós vamos construindo a cada dia, a cada nascer do sol, a cada vez que ele bate na nossa janela lembrando-nos de acordar e encarar o novo dia. A humanidade que é desumana mas que ainda tem chance somos nós mesmo, a depender das opções que façamos, por agir ou abster-se disso. Quando ele fala "até bem pouco tempo atrás/poderíamos mudar o mundo", vejo uma clara referência ao engajamento da juventude nas lutas políticas do país nas duas décadas imediatamente anteriores, algo que não teve a continuidade proporcional às liberdades conquistadas com tanto sofrimento, muito ao contrário.

Quando questiona "quem roubou tua coragem" chama para a tomada de atitude, a busca e construção do próprio destino, características tão humanas quanto a necessidade de " não sentirmos dor", seja qual for.

Meninos e Meninas - Esta letra, cantada num show realizado em Brasília em 1998 desencadeou grande polemica, devido à revelação sobre a opção sexual do poeta, para os que não sabiam, expressa ou perceptível pelo verso "E eu gosto de meninos e meninas". Podemos observar que essa idéia na está explicita em nenhum outro verso, o que aparece é uma inquietação do eu lírico, que parece estar perdido, em desacordo com o que o cerca e à procura de encaixar-se. Este sentimento percorre toda a composição. O eu lírico está perdido por que não se encontra em si mesmo.

Este é um pequeno recorte da obra poética de Renato Russo, onde podemos apreciar sua harmonia na forma de expressar as coisas, muitas vezes, fortes que queria dizer. Sendo um bom poeta, suas músicas continuam dizendo.”

Nenhum comentário: