A verdade das máscaras

 "Doug amava Vicky que amava Juan Antonio que amava Maria Elena e Cristina que se amavam. Ao fim e ao cabo, a dúvida se insinua: poderíamos viver a verdade? 

Flávio Ricardo Vassoler, Carta Maior

O livre comércio está para o mercado negro, assim como o casamento está para a prostituição. Sábia, a esposa/mãe tem consciência de que a meretriz, ao invés de destroná-la, na verdade dá sobrevida ao matrimônio.

A hipocrisia objetiva – aquilo que Oscar Wilde (1854-1900) chamaria de a verdade das máscaras – torna-se ainda mais contraditória com a ocupação maciça do mercado de trabalho pelas mulheres. Ora, o capitalismo e sua frieza constitutiva não admitiriam um abrandamento das relações, de modo que a esfera pública recebesse os atributos historicamente associados à mulher na esfera privada. O carinho, a ternura e a sensibilidade mal resvalam a guerra de todos contra todos. Assim, sobre a mulher fálica recaem desconfiança e ressentimento. Desconfiança diretiva de que ela não tenha se masculinizado suficientemente; ressentimento conjugal – tanto da parte do marido quanto da parte da esposa – como nostalgia da mulher inscrita no (in)consciente coletivo.

Mas os usos e costumes – o rosto como máscara – não se alteram do dia para a noite adúltera. Como o mercado negro diz mais sobre a luz do dia do que a lâmpada do escritório e o abajur ao lado da cama de casal, o marido hoje procura na prostituta não apenas a lascívia que o matrimônio-para-a-procriação esvazia; ele precisa pagar para reencontrar a nudez da submissão feminina anterior à arregimentação do capital.
O embaralhamento das identidades de gênero transforma as casas de swing em um nicho de mercado sumamente necessário. O marido que terceiriza o orgasmo da esposa ao se masturbar diante da traição consentida não é apenas um homossexual itinerante; ele sabe que a ficção de seu matrimônio agora depende da saciedade sexual da mulher fálica, ele sabe que a atual era do monopólio industrial requer liberalidade por parte dos pequenos proprietários para que o todo continue a (re)produzir a usurpação e o privilégio. Das 22h às 6h, a fantasia mostra o rosto para que, durante o almoço dominical com a família da sogra, a verdade das máscaras possa anunciar que Lili está grávida. 
Eis o subsolo de Vicky, Cristina e Barcelona (2008), filme dirigido pelo bom e velho Woody Allen. O diretor nova-iorquino é sumamente consequente para insuflar as tensões de seus filmes: Vicky é uma bela morena até então fiel ao yuppie Doug, que não pôde ir a Barcelona porque o mestrado da namorada em cultura catalã precisa ser financiado por suas especulações em Wall Street; Cristina é o desejo incorporado (e intumescido) por ninguém menos que Scarlett Johansson, a loira libertina. A monogâmica Vicky e a poeta Cristina logo encontram o charmoso pintor Juan Antonio – e o furor do desejo encarnado por ninguém mais que Penélope Cruz, a musa de Almodóvar que Allen transforma na pintora Maria Elena.
Doug amava Vicky que amava Juan Antonio
que amava Maria Elena e Cristina
que se amavam.
Doug ficou nos Estados Unidos, Vicky precisou segui-lo,  
Juan renegou Antonio, Maria desistiu de Cristina,
e Elena se casou com J. Dick Hernández, pai de Doug,
que havia financiado Woody Allen.
Ao fim e ao cabo, a dúvida se insinua: poderíamos viver a verdade sem máscaras como se nossos olhos não tivessem as pálpebras como sentinelas? [Suponho, neste momento, duas atitudes por parte do leitor e da leitora: um breve sorriso de soslaio (cumplicidade) e/ou um breve suspiro que volta a cabeça para o lado esquerdo e desfoca o olhar (resignação).]
Seria possível dizer ao outro tudo aquilo que pensamos? Enquanto o leitor e a leitora refletem sobre o improvável acolhendo o queixo sobre o dorso da mão direita como o pensador de Rodin (1840-1917), o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) nos apresenta duas de suas personagens oriundas do romance O Idiota(1869): o Príncipe Míckhin, fusão onírica de Jesus Cristo e Dom Quixote, e Aglaia Iepántchina, bela jovem representante da então nova geração feminina repleta de desejos e saturada de castrações.
Aglaia não se faz de rogada e, a reboque de seu feminismo, faz a corte a Míchkin. Ora, o leitor e a leitora bem podem imaginar que o Príncipe Dom Cristo não é dos mais impetuosos. Ainda assim, Míchkin desconhece a mentira e jamais pronuncia meias palavras. Logo, Aglaia se mostra contrafeita com a nudez de Míckhin – ele já estava comprometido com Nastácia Filíppovna, a mulher mais pungente de toda a obra de Dostoiévski. O feminismo de Aglaia (a razão) se vê turvado pela vaidade feminina ferida (a sensibilidade). Então, Aglaia enuncia a verdade das máscaras:
− Saiba, Míchkin, que você só tem verdade... E, portanto, é cruel!"

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