Antonio Luiz M. C. Costa / Blog do Antonio Luiz
Os super-heróis surgiram em quadrinhos destinados a crianças e adolescentes dos anos 1930 e 1940. Nesse contexto povoado por animais falantes, mortos-vivos e marinheiros loucos por espinafre, suas mais bizarras extravagâncias e inverossimilhanças foram facilmente perdoadas. À medida que os quadrinhos chamavam a atenção de adultos e o público amadurecia, as histórias se tornaram menos irreais do ponto de vista social e psicológico. As adaptações para o cinema reforçaram essa tendência, pois a mera transposição para a tela reduziria ao ridículo os personagens mais bem-sucedidos nos quadrinhos se seus uniformes, hábitos e bordões não fossem devidamente aclimatados a essa mídia e a seus códigos e tradições.
E uma adaptação à literatura? Embora seja em princípio o meio mais
aberto à experimentação, normalmente pede maior atenção para a reflexão e
a subjetividade, logo mais humanização que o cinema. Principalmente se
escrita depois da desconstrução do mito por Alan Moore, que nos
quadrinhos de Miracleman e Watchmen expôs as terríveis consequências que se poderia realisticamente esperar caso surgissem super-heróis no mundo real.
Esse é o clima da maior parte da antologia Super-heróis da Editora Draco (304 págs, R$ 49,90 em papel, R$ 24,90 em e-book), organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luiz Felipe Vasques. Muitos dos 14 contos, sempre sobre super-heróis criados pelos próprios autores brasileiros e portugueses e ambientados nesses países, descrevem protagonistas tão cheios de problemas e com superpoderes ou recursos tão limitados que chegam a inspirar mais riso ou piedade do que admiração. Alguns dos personagens são especialmente inusitados e abordam o tema de maneira mais surpreendente, mas quase todas as histórias são criativas e instigantes.
“Edição de Colecionador”, de Romeu Martins, abre a coletânea com um herói poderoso e impressionante, mas dos mais heterodoxos: Le Baron Noir, um feiticeiro vudu do Haiti que busca justiça para seu povo pobre e explorado. O excesso descritivo deixa o início um tanto arrastado e a escolha da vítima, um roqueiro gaúcho, um tanto arbitrária, mas a concepção do personagem e o senso de drama fazem desta uma das melhores histórias. Uma amostra:
O negro coça o queixo quadrado com dedos pontudos de unhas compridas.
– Sabia que não iria reconhecer minha língua. Não faz muito tempo, você participou de um festival beneficente usando o nome do meu país e nem mesmo faz ideia do idioma que falamos. Fez tudo à distância, não é mesmo? Sem se envolver de verdade.
– Festival beneficente... O do verão passado? Haiti? É de lá que tu veio?
Já o Vulto, protagonista de “Novo Herói na Cidade”, de Alex Ricardo Parolin, é o super-herói mais convencional da coletânea. Muito à maneira do Batman, caça criminosos em São Paulo com uma armadura e bugigangas tecnológicas desde que sua mulher foi morta em um assalto. Foi treinado por um super-herói estadunidense aposentado que bem poderia ter saído das páginas de Watchmen, mas não trouxe delas seu senso de ironia: sente-se injustiçado por ter ficado dez anos na prisão pelo deslize de detonar uma bomba que matou “não só os criminosos que perseguia, mas também pedestres ao redor e sessenta crianças de uma escola naquele quarteirão”. É a história de um herói sem autocrítica e que se leva demasiado a sério, embora a narrativa em torno de seu trauma, seu treinamento e sua aventura tenha sido bem cuidada, com toques de realismo muito convincentes. Amostra:
Mas o que importa é que os criminosos agora têm um nome a temer.
Nunca sabem onde irei aparecer. Precisam planejar cada passo antes de agir, de modo meticuloso, para que eu não frustre seus planos novamente. Correm as ruas pelos cantos, na esperança que eu não caia sobre eles como um raio. Como um vulto. Mas eles sabem que é questão de tempo até serem pegos. Ah, eles sabem.
“Ascenção e cancelamento do mais infame supergrupo de heróis da Terra”, de Pedro Vieira, pelo contrário, é uma sátira desbragada dos super-heróis de quadrinhos e da subcultura nerd que os idolatra. Com seu quarteto de heróis chamado 8-Bits, caricatura os piores clichês do gênero e as ridículas reviravoltas impostas às séries para tentar reanimar suas vendas até os limites do absurdo. Uma amostra:
Não era culpa do Samurai Comunista. Todos sabiam que ele estava sendo controlado pelo Camarada, um vilão – antigo inimigo do aposentado Capitão Cifrão – a quem todos julgavam morto. O Camarada usava seus poderes estatizantes para planificar a realidade. Era um inimigo formidável. Quando o Terror Terrier conjurou suas tropas de terriers selvagens, o Camarada simplesmente os estatizou e os enviou para a Sibéria. A Mulher-Manati teve menos sorte: suas camadas extras de gordura aqueceriam e alimentariam muitas famílias no inverno rigoroso da Mãe Rússia.
Nesta coletânea de qualidade bastante homogênea, “Roda Viva”, de Gustavo Vicola, é o conto menos satisfatório. Nos seus poderes e manobras, seu Corisco é decalcado do Flash da DC Comics, mas faltou habilidade na linguagem e na narrativa. O super-herói foi originalmente um escravo dos anos 1880, que chegou ao século XXI ao correr para tentar salvar o filho. Não faz sentido nem pelas convenções dos quadrinhos: supostamente um herói volta ao passado ao superar a velocidade da luz, embora mais tarde o herói tenha de se esforçar para emparelhar com uma máquina que corre a meras centenas de quilômetros por hora. Corisco tem como amigo e mentor um físico da USP, que lhe explica professoralmente que “uma roda por si só não possui grande estabilidade e, numa velocidade elevada, tombará facilmente” – um absurdo, como se descobre facilmente ao usar uma bicicleta. A história de sua origem, embora dê ao herói um toque de originalidade, é pouco convincente e sua experiência como escravo fugido tem pouca conexão com sua personalidade no presente. Amostra:
– Corisco? Está me ouvindo? – Uma voz abafada ecoa do rádio que compõe o traje do herói. O visor negro espelhado de sua máscara é fixado sobre os olhos tal qual u arco, cujos pontos de pressão estão em suas orelhas. É onde estão instalados os receptores de rádio. Um microfone minúsculo completa a composição na região do queixo, na parte interna do uniforme, reforçado para proteger tanto a mandíbula do corredor quanto o emissor de rádio. – Responda!
– Professor? Já estava na hora! Por que demorou tanto? – Corisco questiona com certa irritação, apesar de se sentir aliviado com a chamada. Se alguém pode ajudá-lo, é o Professor Semensato. Em sua época, Bento era capaz de usar a velocidade para superar quase todos os desafios que encontrava, mas no século XIX o mundo não era tão estranho e nem tão hostil quanto hoje. No mundo que ele pouco entende, o cientista tem sido um aliado valioso.
“O dia de todas as provas”, de João Rogaciano, é sobre um herói que vive na pequena ilha portuguesa de Porto Santo, próxima da Madeira, por volta de 1617. Foge completamente ao padrão dos quadrinhos: o protagonista Pedro Dias é um ferreiro adolescente, não tem uniforme vistoso, identidade secreta ou nome de guerra e seu único poder, inexplicado, é o de poder passar horas debaixo d’água sem respirar. Ainda assim, ele se mostra capaz de usá-lo de maneira bem engenhosa ao lutar ao lado de seu povo contra um ataque de piratas – não como seu salvador ou líder, mas como um conterrâneo com uma habilidade especial.
Esforçou o olhar e tentou ver o que se passava no porto junto da vila. Por entre a névoa negra em que o fumo se tinha transformado, entreviu algumas embarcações de grande porte. Reconheceu os pavilhões que ostentavam.
– Navios argelinos! – Cerrou os punhos, enraivecido. Todos os músculos do seu corpo se retesaram. – Piratas!
O protagonista de “Herói das Urnas”, de Roberta Spindler, ficou com uma perna inválida ao levar um tiro ao fim de cinco anos de uma carreira de cinco anos como super-herói decide se candidatar a prefeito, acreditando poder assim ajudar melhor as pessoas. A força sobre-humana e os projetos políticos do cândido O Mito têm, porém, um papel secundário nesse conto cujos temas principais são o marketing político e a manipulação dos eleitores.
Seu assessor Adalberto Braga – o autor daquele texto que, na sua humilde opinião de super-herói aposentado, não estava lá grande coisa – acenava com a cabeça a cada frase pronunciada e o incentivava com sinais de positivo constrangedores.
“Como prefeito do Rio de Janeiro, prometo combater as mazelas que tanto ferem nossa cidade, dedicando atenção especial ao combate à corrupção. Agirei como um verdadeiro vingador contra aqueles que desrespeitarem o voto dos eleitores. Se você acredita no Mito vote: 88. Obrigado.”
“O Doutor e o Monstro”, de Gerson Lodi-Ribeiro, estica tanto o conceito de super-herói que é de se perguntar se realmente cabe no gênero, mas é bom como conto fantástico inspirado no folclore brasileiro. Nesta história, o protagonista é um fazendeiro inesperadamente ajudado por uma onça cabocla (lenda nordestina, de um humano que se transforma em onça) ao tentar emboscar um lobisomem europeu que atacou animais e parentes em sua propriedade perto das Agulhas Negras. Soam um tanto arbitrárias tanto a disposição do homem-onça “super-herói” de proteger humanos quanto a do lobisomem “supervilão” de atacá-los, mas de resto é um causo bem contado , com uma saborosa linguagem regionalista.
O capataz aponta para outras pegadas, quase tão grandes quanto as que pareciam de onça, só que de formato diverso.
Cândido abana a cabeça.
– De uns tempos pra cá, esses dois tipos de pegada vêm aparecendo juntos, próximos da mesma vítima, né?
– É, sim senhor.
– Será que existem duas feras? Dois animais de raças diferentes?
– Conforme eu falei pro senhor.
– E agora decidiram andar juntos, matando meu gado...
– Não andam juntos, não senhor.
– Como é que é?
– O senhor arrepare só esses rastros maiores, esses parecidos com os de uma onça-pintada. Tão mais frescos do que os outros, esses daqui, ó, que o povo anda dizendo que são de lobisomem...
“A última aventura do Pardal Mecânico” de Dennis Vinicius, humorístico, tem um dos heróis mais patéticos da antologia. Aposentado e fora de forma, vê-se ridicularizado na tevê por um jornalista que recorda sua carreira para ironizá-la e luta em vão para abrir um vidro de palmito. A aventura começa quando se dá conta de que seu apartamento está sendo assaltado
.
Ser massacrado na televisão me deu fome. Levantei-me (um esforço digno de super-herói) e fui até a cozinha. Abri a geladeira e suspirei ao ver o conteúdo: meia caixa de leite azedo, mesma barra de manteiga e um pote de vidro de palmito. Peguei o pote e fechei a geladeira. Anotei num caderninho sobre o balcão que precisava fazer compras na manhã seguinte.
“O Grande Golias”, de Luiz Felipe Vasques, nos apresenta um super-herói ingênuo, sofredor e explorado que vive nos tempos de Getúlio Vargas e Gaspar Dutra. Homem forte de circo, é recrutado pelo Estado Novo para lutar na II Guerra Mundial e promover a imagem do regime, juntamente com outros brasileiros com poderes excepcionais. Retorna como vitorioso, mas o alcoolismo e os atritos com seus ex-colegas o levam ao ostracismo e a um fim trágico (não é spoiler, pois isso é revelado nos primeiros parágrafos). Abusa um tanto do melodrama, mas personagens convincentes e um cenário bem construído tornam a leitura atraente.
Uma carteira oficial apareceu à sua frente. Demétrio não conseguiu saber o que era, mas a atitude era típica de autoridade. Resolveu aprumar-se. Os pais começaram a puxar seus filhos dali, em todo caso. Sem que pedissem, tinham uma certa privacidade, salvo por dois colegas de circo mais corajosos. O que puxara a carteira era o mais alto dos dois, encorpado para gordo, olhos miúdos, cabelos claros, crespos. Alto para a média do brasileiro, ainda assim olhava para cima ao falar com o mestiço de pele escura.
– Meu nome é Lourival Fagundes Filho e este é meu colega, Pascoal Motta. Representamos o governo federal e gostaríamos de ter uma palavrinha com o senhor. O que o senhor me diz de ajudar o Brasil contra o perigo nazi-fascista?
“Pela terceira idade”, de Inês Montenegro, é mais um aposentado, mas desta vez a história é de tom melancólico. Super-Sem foi um respeitável super-herói português nos anos 1970, logo após a Revolução dos Cravos, mas agora é um velho solitário com dificuldades para compreender o mundo moderno e cujos superpoderes já não funcionam, mas que insiste em se portar como super-herói mesmo assim e tenta ajudar uma jovem vítima de assalto, oportunidade para se questionar o conceito de heróismo. Boa história, com personagens bem concebidos e muita sensibilidade para com seus problemas.
Não era inusual que Patrícia desconhecesse o Super-Sem. Afinal, havia anos que suas intervenções eram esporádicas, algo devido à irregularidade que os seus poderes agora apresentavam. A figura de traje e gravata azuis, acompanhados por uma máscar aubra, acabara por se tornar mais um mito corrente na geração acima da sua do que algo em que pudesse verdadeiramente acreditar.
“Sete Horas”, de Gian Danton, tem um ritmo, uma ênfase no visual e uma concepção de ação e de personagens mais próxima à dos quadrinhos mais tradicionais. Marco, o Anjo, que tem supersentidos e pode voar, é um mocinho sem nuances e precisa salvar sua esposa de um vilão maligno e inverossímil na mais estereotipada aventura “donzela em perigo”, mas o senso de suspense pode divertir quem entrar nesse clima de comics à moda antiga.
A bolsa de Cristina estava sobre o sofá, mas a casa estava silenciosa. Preocupado, andou até a cozinha. Havia um papel branco dobrado sobre a mesa. Marcos abriu o papel. Havia apenas uma frase nele:
VOCÊ NÃO SABE ONDE ELA ESTÁ.
“Barlavento 1807”, de Vitor Vitali, é especialmente original na concepção dos personagens e na escolha do cenário. Os super-heróis são um picaresco par de simpáticos gatunos portugueses com poderes curiosos e bom coração, o Ladrão e o Bobo, que aproveitam a confusão criada pela invasão de Napoleão e fuga da família real portuguesa para roubar um pouco das riquezas que os nobres em debandada querem levar para o Brasil. Na opinião deste resenhista, o conto mais interessante da antologia. Amostra:
Caminhando sobre a amuada até onde puderam, por fim ambos se jogaram para trás, deixando-se cair sobre um monte de palha numa estrada de carroças, um carreiro. O Ladrão apagou as chamas pequenas das lanternas próximas com um estalar dos dedos e logo estavam no escuro. Não sabia como fazia o que fazia, tampouco o sabia Bobo, que, por mais irônico que parecesse, conhecia mais das letras e das cousas do mundo que Ladrão. De qualquer maneira, fosse como fosse, nasceram daquela forma, cada um com seu talento, seu poder. Decerto era dádiva abençoada por algum santo que não exigira nada em troca, um cavalo dado, como diziam por aí. Não era dever de nenhum deles olhar-lhe os dentes, tampouco seria educado para com o cavalo.
“Verdade sobre Raio Vermelho – uma biografia”, de Lucas Rocha, conta mais uma história de super-herói aposentado, desta vez não por idade ou invalidez, mas para ganhar dinheiro como guarda-costas de um megaempresário de caráter duvidoso. É proposital que o protagonista, que voa e emite lasers com os olhos, seja antipático e desagradável. Mas a narrativa, na forma de uma série de gravações feitas por um entrevistador que prepara uma biografia, deixa um pouco a desejar em termos de profundidade e consistência. Amostra:
A crianças me adoram e as velhinhas batem palmas quando me veem passando pela rua. Não vou dizer que eu não gosto. É claro que gosto. Mas isso não é bastante, sabe? Quem vive de aplauso é a Sininho, não eu. Eu ainda preciso comer e pagar a conta de luz. Todo mundo critica minha opção, falando: “você se vendeu ao capitalismo, esqueceu o que significa o uniforme que teu pai te passou e tudo o que ele construiu como paladino no Rio de Janeiro”, mas ninguém se preocupa em perguntar como vai meu cheque especial ou quantas vezes a companhia de água já me ameaçou de corte.
“Jaya e o enigma de Pala”, de Antonio Luiz M. C. Costa (este resenhista), juvenil e otimista, é o único conto a ter como protagonista uma super-heroína. Dotada de recursos tecnológicos imensos, Jaya é uma ciborgue extraterrestre engajada numa disputa interestelar pelo controle do planeta e tem como ajudante uma poderosa inteligência artificial chamada Anael. O tom é de história em quadrinhos heroica com toques de humor e ficção científica.
Jaya pegou sua mochila de utilidades, apetrecho favorito para missões de campo complicadas. Com peso de mais de cem quilos, estava cheia de metal vivo, uma massa de nanobôs capazes de construir em segundos qualquer coisa que ela conseguisse programar. Então pediu para Anael abrir o portal no Rio de Janeiro, ao pé do morro.
Era quase meia-noite e quatro sujeitos guardavam a entrada da favela de AK-47 em punho. Parecia que o tal do Josias já estava esperando encrenca.
“LEGAL, ATÉ QUE ENFIM UM POUCO DE AÇÃO! QUAL É O SEU PLANO?” – Anael indagou por radiotelepatia.
“Pedir licença e entrar, ora. Agora fique quieto.”
– Moço, dá licença de subir? – Perguntou para um dos seguranças.
– Quallé, tcuthuca? Esta noite ninguém entra, ordem do dono da boca."
Esse é o clima da maior parte da antologia Super-heróis da Editora Draco (304 págs, R$ 49,90 em papel, R$ 24,90 em e-book), organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luiz Felipe Vasques. Muitos dos 14 contos, sempre sobre super-heróis criados pelos próprios autores brasileiros e portugueses e ambientados nesses países, descrevem protagonistas tão cheios de problemas e com superpoderes ou recursos tão limitados que chegam a inspirar mais riso ou piedade do que admiração. Alguns dos personagens são especialmente inusitados e abordam o tema de maneira mais surpreendente, mas quase todas as histórias são criativas e instigantes.
“Edição de Colecionador”, de Romeu Martins, abre a coletânea com um herói poderoso e impressionante, mas dos mais heterodoxos: Le Baron Noir, um feiticeiro vudu do Haiti que busca justiça para seu povo pobre e explorado. O excesso descritivo deixa o início um tanto arrastado e a escolha da vítima, um roqueiro gaúcho, um tanto arbitrária, mas a concepção do personagem e o senso de drama fazem desta uma das melhores histórias. Uma amostra:
O negro coça o queixo quadrado com dedos pontudos de unhas compridas.
– Sabia que não iria reconhecer minha língua. Não faz muito tempo, você participou de um festival beneficente usando o nome do meu país e nem mesmo faz ideia do idioma que falamos. Fez tudo à distância, não é mesmo? Sem se envolver de verdade.
– Festival beneficente... O do verão passado? Haiti? É de lá que tu veio?
Já o Vulto, protagonista de “Novo Herói na Cidade”, de Alex Ricardo Parolin, é o super-herói mais convencional da coletânea. Muito à maneira do Batman, caça criminosos em São Paulo com uma armadura e bugigangas tecnológicas desde que sua mulher foi morta em um assalto. Foi treinado por um super-herói estadunidense aposentado que bem poderia ter saído das páginas de Watchmen, mas não trouxe delas seu senso de ironia: sente-se injustiçado por ter ficado dez anos na prisão pelo deslize de detonar uma bomba que matou “não só os criminosos que perseguia, mas também pedestres ao redor e sessenta crianças de uma escola naquele quarteirão”. É a história de um herói sem autocrítica e que se leva demasiado a sério, embora a narrativa em torno de seu trauma, seu treinamento e sua aventura tenha sido bem cuidada, com toques de realismo muito convincentes. Amostra:
Mas o que importa é que os criminosos agora têm um nome a temer.
Nunca sabem onde irei aparecer. Precisam planejar cada passo antes de agir, de modo meticuloso, para que eu não frustre seus planos novamente. Correm as ruas pelos cantos, na esperança que eu não caia sobre eles como um raio. Como um vulto. Mas eles sabem que é questão de tempo até serem pegos. Ah, eles sabem.
“Ascenção e cancelamento do mais infame supergrupo de heróis da Terra”, de Pedro Vieira, pelo contrário, é uma sátira desbragada dos super-heróis de quadrinhos e da subcultura nerd que os idolatra. Com seu quarteto de heróis chamado 8-Bits, caricatura os piores clichês do gênero e as ridículas reviravoltas impostas às séries para tentar reanimar suas vendas até os limites do absurdo. Uma amostra:
Não era culpa do Samurai Comunista. Todos sabiam que ele estava sendo controlado pelo Camarada, um vilão – antigo inimigo do aposentado Capitão Cifrão – a quem todos julgavam morto. O Camarada usava seus poderes estatizantes para planificar a realidade. Era um inimigo formidável. Quando o Terror Terrier conjurou suas tropas de terriers selvagens, o Camarada simplesmente os estatizou e os enviou para a Sibéria. A Mulher-Manati teve menos sorte: suas camadas extras de gordura aqueceriam e alimentariam muitas famílias no inverno rigoroso da Mãe Rússia.
Nesta coletânea de qualidade bastante homogênea, “Roda Viva”, de Gustavo Vicola, é o conto menos satisfatório. Nos seus poderes e manobras, seu Corisco é decalcado do Flash da DC Comics, mas faltou habilidade na linguagem e na narrativa. O super-herói foi originalmente um escravo dos anos 1880, que chegou ao século XXI ao correr para tentar salvar o filho. Não faz sentido nem pelas convenções dos quadrinhos: supostamente um herói volta ao passado ao superar a velocidade da luz, embora mais tarde o herói tenha de se esforçar para emparelhar com uma máquina que corre a meras centenas de quilômetros por hora. Corisco tem como amigo e mentor um físico da USP, que lhe explica professoralmente que “uma roda por si só não possui grande estabilidade e, numa velocidade elevada, tombará facilmente” – um absurdo, como se descobre facilmente ao usar uma bicicleta. A história de sua origem, embora dê ao herói um toque de originalidade, é pouco convincente e sua experiência como escravo fugido tem pouca conexão com sua personalidade no presente. Amostra:
– Corisco? Está me ouvindo? – Uma voz abafada ecoa do rádio que compõe o traje do herói. O visor negro espelhado de sua máscara é fixado sobre os olhos tal qual u arco, cujos pontos de pressão estão em suas orelhas. É onde estão instalados os receptores de rádio. Um microfone minúsculo completa a composição na região do queixo, na parte interna do uniforme, reforçado para proteger tanto a mandíbula do corredor quanto o emissor de rádio. – Responda!
– Professor? Já estava na hora! Por que demorou tanto? – Corisco questiona com certa irritação, apesar de se sentir aliviado com a chamada. Se alguém pode ajudá-lo, é o Professor Semensato. Em sua época, Bento era capaz de usar a velocidade para superar quase todos os desafios que encontrava, mas no século XIX o mundo não era tão estranho e nem tão hostil quanto hoje. No mundo que ele pouco entende, o cientista tem sido um aliado valioso.
“O dia de todas as provas”, de João Rogaciano, é sobre um herói que vive na pequena ilha portuguesa de Porto Santo, próxima da Madeira, por volta de 1617. Foge completamente ao padrão dos quadrinhos: o protagonista Pedro Dias é um ferreiro adolescente, não tem uniforme vistoso, identidade secreta ou nome de guerra e seu único poder, inexplicado, é o de poder passar horas debaixo d’água sem respirar. Ainda assim, ele se mostra capaz de usá-lo de maneira bem engenhosa ao lutar ao lado de seu povo contra um ataque de piratas – não como seu salvador ou líder, mas como um conterrâneo com uma habilidade especial.
Esforçou o olhar e tentou ver o que se passava no porto junto da vila. Por entre a névoa negra em que o fumo se tinha transformado, entreviu algumas embarcações de grande porte. Reconheceu os pavilhões que ostentavam.
– Navios argelinos! – Cerrou os punhos, enraivecido. Todos os músculos do seu corpo se retesaram. – Piratas!
O protagonista de “Herói das Urnas”, de Roberta Spindler, ficou com uma perna inválida ao levar um tiro ao fim de cinco anos de uma carreira de cinco anos como super-herói decide se candidatar a prefeito, acreditando poder assim ajudar melhor as pessoas. A força sobre-humana e os projetos políticos do cândido O Mito têm, porém, um papel secundário nesse conto cujos temas principais são o marketing político e a manipulação dos eleitores.
Seu assessor Adalberto Braga – o autor daquele texto que, na sua humilde opinião de super-herói aposentado, não estava lá grande coisa – acenava com a cabeça a cada frase pronunciada e o incentivava com sinais de positivo constrangedores.
“Como prefeito do Rio de Janeiro, prometo combater as mazelas que tanto ferem nossa cidade, dedicando atenção especial ao combate à corrupção. Agirei como um verdadeiro vingador contra aqueles que desrespeitarem o voto dos eleitores. Se você acredita no Mito vote: 88. Obrigado.”
“O Doutor e o Monstro”, de Gerson Lodi-Ribeiro, estica tanto o conceito de super-herói que é de se perguntar se realmente cabe no gênero, mas é bom como conto fantástico inspirado no folclore brasileiro. Nesta história, o protagonista é um fazendeiro inesperadamente ajudado por uma onça cabocla (lenda nordestina, de um humano que se transforma em onça) ao tentar emboscar um lobisomem europeu que atacou animais e parentes em sua propriedade perto das Agulhas Negras. Soam um tanto arbitrárias tanto a disposição do homem-onça “super-herói” de proteger humanos quanto a do lobisomem “supervilão” de atacá-los, mas de resto é um causo bem contado , com uma saborosa linguagem regionalista.
O capataz aponta para outras pegadas, quase tão grandes quanto as que pareciam de onça, só que de formato diverso.
Cândido abana a cabeça.
– De uns tempos pra cá, esses dois tipos de pegada vêm aparecendo juntos, próximos da mesma vítima, né?
– É, sim senhor.
– Será que existem duas feras? Dois animais de raças diferentes?
– Conforme eu falei pro senhor.
– E agora decidiram andar juntos, matando meu gado...
– Não andam juntos, não senhor.
– Como é que é?
– O senhor arrepare só esses rastros maiores, esses parecidos com os de uma onça-pintada. Tão mais frescos do que os outros, esses daqui, ó, que o povo anda dizendo que são de lobisomem...
“A última aventura do Pardal Mecânico” de Dennis Vinicius, humorístico, tem um dos heróis mais patéticos da antologia. Aposentado e fora de forma, vê-se ridicularizado na tevê por um jornalista que recorda sua carreira para ironizá-la e luta em vão para abrir um vidro de palmito. A aventura começa quando se dá conta de que seu apartamento está sendo assaltado
.
Ser massacrado na televisão me deu fome. Levantei-me (um esforço digno de super-herói) e fui até a cozinha. Abri a geladeira e suspirei ao ver o conteúdo: meia caixa de leite azedo, mesma barra de manteiga e um pote de vidro de palmito. Peguei o pote e fechei a geladeira. Anotei num caderninho sobre o balcão que precisava fazer compras na manhã seguinte.
“O Grande Golias”, de Luiz Felipe Vasques, nos apresenta um super-herói ingênuo, sofredor e explorado que vive nos tempos de Getúlio Vargas e Gaspar Dutra. Homem forte de circo, é recrutado pelo Estado Novo para lutar na II Guerra Mundial e promover a imagem do regime, juntamente com outros brasileiros com poderes excepcionais. Retorna como vitorioso, mas o alcoolismo e os atritos com seus ex-colegas o levam ao ostracismo e a um fim trágico (não é spoiler, pois isso é revelado nos primeiros parágrafos). Abusa um tanto do melodrama, mas personagens convincentes e um cenário bem construído tornam a leitura atraente.
Uma carteira oficial apareceu à sua frente. Demétrio não conseguiu saber o que era, mas a atitude era típica de autoridade. Resolveu aprumar-se. Os pais começaram a puxar seus filhos dali, em todo caso. Sem que pedissem, tinham uma certa privacidade, salvo por dois colegas de circo mais corajosos. O que puxara a carteira era o mais alto dos dois, encorpado para gordo, olhos miúdos, cabelos claros, crespos. Alto para a média do brasileiro, ainda assim olhava para cima ao falar com o mestiço de pele escura.
– Meu nome é Lourival Fagundes Filho e este é meu colega, Pascoal Motta. Representamos o governo federal e gostaríamos de ter uma palavrinha com o senhor. O que o senhor me diz de ajudar o Brasil contra o perigo nazi-fascista?
“Pela terceira idade”, de Inês Montenegro, é mais um aposentado, mas desta vez a história é de tom melancólico. Super-Sem foi um respeitável super-herói português nos anos 1970, logo após a Revolução dos Cravos, mas agora é um velho solitário com dificuldades para compreender o mundo moderno e cujos superpoderes já não funcionam, mas que insiste em se portar como super-herói mesmo assim e tenta ajudar uma jovem vítima de assalto, oportunidade para se questionar o conceito de heróismo. Boa história, com personagens bem concebidos e muita sensibilidade para com seus problemas.
Não era inusual que Patrícia desconhecesse o Super-Sem. Afinal, havia anos que suas intervenções eram esporádicas, algo devido à irregularidade que os seus poderes agora apresentavam. A figura de traje e gravata azuis, acompanhados por uma máscar aubra, acabara por se tornar mais um mito corrente na geração acima da sua do que algo em que pudesse verdadeiramente acreditar.
“Sete Horas”, de Gian Danton, tem um ritmo, uma ênfase no visual e uma concepção de ação e de personagens mais próxima à dos quadrinhos mais tradicionais. Marco, o Anjo, que tem supersentidos e pode voar, é um mocinho sem nuances e precisa salvar sua esposa de um vilão maligno e inverossímil na mais estereotipada aventura “donzela em perigo”, mas o senso de suspense pode divertir quem entrar nesse clima de comics à moda antiga.
A bolsa de Cristina estava sobre o sofá, mas a casa estava silenciosa. Preocupado, andou até a cozinha. Havia um papel branco dobrado sobre a mesa. Marcos abriu o papel. Havia apenas uma frase nele:
VOCÊ NÃO SABE ONDE ELA ESTÁ.
“Barlavento 1807”, de Vitor Vitali, é especialmente original na concepção dos personagens e na escolha do cenário. Os super-heróis são um picaresco par de simpáticos gatunos portugueses com poderes curiosos e bom coração, o Ladrão e o Bobo, que aproveitam a confusão criada pela invasão de Napoleão e fuga da família real portuguesa para roubar um pouco das riquezas que os nobres em debandada querem levar para o Brasil. Na opinião deste resenhista, o conto mais interessante da antologia. Amostra:
Caminhando sobre a amuada até onde puderam, por fim ambos se jogaram para trás, deixando-se cair sobre um monte de palha numa estrada de carroças, um carreiro. O Ladrão apagou as chamas pequenas das lanternas próximas com um estalar dos dedos e logo estavam no escuro. Não sabia como fazia o que fazia, tampouco o sabia Bobo, que, por mais irônico que parecesse, conhecia mais das letras e das cousas do mundo que Ladrão. De qualquer maneira, fosse como fosse, nasceram daquela forma, cada um com seu talento, seu poder. Decerto era dádiva abençoada por algum santo que não exigira nada em troca, um cavalo dado, como diziam por aí. Não era dever de nenhum deles olhar-lhe os dentes, tampouco seria educado para com o cavalo.
“Verdade sobre Raio Vermelho – uma biografia”, de Lucas Rocha, conta mais uma história de super-herói aposentado, desta vez não por idade ou invalidez, mas para ganhar dinheiro como guarda-costas de um megaempresário de caráter duvidoso. É proposital que o protagonista, que voa e emite lasers com os olhos, seja antipático e desagradável. Mas a narrativa, na forma de uma série de gravações feitas por um entrevistador que prepara uma biografia, deixa um pouco a desejar em termos de profundidade e consistência. Amostra:
A crianças me adoram e as velhinhas batem palmas quando me veem passando pela rua. Não vou dizer que eu não gosto. É claro que gosto. Mas isso não é bastante, sabe? Quem vive de aplauso é a Sininho, não eu. Eu ainda preciso comer e pagar a conta de luz. Todo mundo critica minha opção, falando: “você se vendeu ao capitalismo, esqueceu o que significa o uniforme que teu pai te passou e tudo o que ele construiu como paladino no Rio de Janeiro”, mas ninguém se preocupa em perguntar como vai meu cheque especial ou quantas vezes a companhia de água já me ameaçou de corte.
“Jaya e o enigma de Pala”, de Antonio Luiz M. C. Costa (este resenhista), juvenil e otimista, é o único conto a ter como protagonista uma super-heroína. Dotada de recursos tecnológicos imensos, Jaya é uma ciborgue extraterrestre engajada numa disputa interestelar pelo controle do planeta e tem como ajudante uma poderosa inteligência artificial chamada Anael. O tom é de história em quadrinhos heroica com toques de humor e ficção científica.
Jaya pegou sua mochila de utilidades, apetrecho favorito para missões de campo complicadas. Com peso de mais de cem quilos, estava cheia de metal vivo, uma massa de nanobôs capazes de construir em segundos qualquer coisa que ela conseguisse programar. Então pediu para Anael abrir o portal no Rio de Janeiro, ao pé do morro.
Era quase meia-noite e quatro sujeitos guardavam a entrada da favela de AK-47 em punho. Parecia que o tal do Josias já estava esperando encrenca.
“LEGAL, ATÉ QUE ENFIM UM POUCO DE AÇÃO! QUAL É O SEU PLANO?” – Anael indagou por radiotelepatia.
“Pedir licença e entrar, ora. Agora fique quieto.”
– Moço, dá licença de subir? – Perguntou para um dos seguranças.
– Quallé, tcuthuca? Esta noite ninguém entra, ordem do dono da boca."
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